Comoção pela morte do Professor Antônio Baniwa marcou a pandemia no Rio Negro

Os dois primeiros casos da Covid-19 foram registrados em São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste do Amazonas, em 26 de abril. Um dos pacientes era uma profissional de saúde, que apresentou sintomas leves e se recuperou. O outro era o professor Walter Antônio Benjamin Baniwa, que foi atendido na cidade, teve o quadro agravado, chegou a ser transferido para Manaus, mas acabou falecendo. Essa morte causou comoção, sendo um marco em São Gabriel. Ao falarem sobre a pandemia, muitos familiares de vítimas da Covid-19 no Rio Negro costumam usar o caso do professor Antônio como referência. É comum ouvir declarações como: “foi logo após o professor Antônio adoecer” ou “foi antes da morte do professor Antônio”.

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Michelle da Silva, sobrinha de Antônio Baniwa, foi a única da família a acompanhar o sepultamento do professor

Essa comoção aconteceu não apenas por se tratar do primeiro caso grave da nova doença no município, mas também pela trajetória do professor. Indígena da etnia Baniwa, o professor Antônio Benjamin tinha apenas 44 anos, era liderança e referência na área de educação. Destacou-se ao estudar em sua aldeia e foi indicado pela comunidade para ir cursar universidade fora. É lembrado por estar sempre alegre, disposto a ajudar. Além disso, ainda tinha um pequeno hotel na cidade e tinha uma vida estável.

Com todas essas características, o professor estava fora do grupo de risco e estaria mais protegido do novo coronavírus. Sua morte reforçou o temor de que ocorreriam muitos óbitos na cidade. São Gabriel da Cachoeira é o município com maior população indígena do país e, por esse motivo, profissionais da saúde, pesquisadores e moradores temiam que a pandemia fosse especialmente severa. Considera-se que os povos tradicionais estão em situação de maior vulnerabilidade, pois têm resistência menor a algumas doenças respiratórias e, muitas vezes, o acesso aos serviços de saúde é precário. Reforçava esse temor a memória de outras epidemias que atingiram a região – como de sarampo e coqueluche – e custaram muitas vidas. Por fim, o modo de vida coletivo ainda colocava as pessoas numa linha de maior risco de transmissão do vírus.

Esse temor foi se dissipando aos poucos, com os indígenas utilizando estratégias próprias contra a doença, por meio de remédios e práticas tradicionais.

Sobrinha de Antônio Baniwa, a enfermeira Michelle da Silva Luciano conta que o tio também fez uso de chás tradicionais quando apresentou os primeiros sintomas da doença, sem ainda saber que estava com a Covid-19. Ele melhorou, mas retomou as atividades rotineiras e acabou piorando novamente. Michelle acompanhou o tio quando ele foi transferido para Manaus e, devido aos protocolos sanitários, foi a única a acompanhar o sepultamento dele, também na capital do Amazonas. 

Nascido no Distrito de Assunção do Içana, o professor Antônio atuou em São Gabriel da Cachoeira como coordenador regional da Secretaria de Estado da Educação e Desporto (Seduc) do Amazonas e professor efetivo. Deu aulas na Escola Estadual de Assunção do Içana, sendo indicado pela comunidade a estudar no curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Estadual do Mato Grosso.

Ele morreu na noite do dia 4 de maio, no Hospital Delphina Aziz, em Manaus, para onde foi transferido após ser atendido no Hospital de Guarnição (HGU) em São Gabriel e ter o quadro agravado. Em 24 de abril, ele foi internado no HGU com problemas respiratórios e, no dia 26, saiu a comprovação de que ele havia contraído a Covid-19.  

O professor era casado com Maria Rodrigues e o casal não tinha filhos. “Ele considerava todos os sobrinhos como filhos”, disse sua sobrinha Michelle. Quando relembra os últimos dias de seu tio Antônio Baniwa, ela se emociona e nem a máscara de proteção contra a Covid-19 é suficiente para esconder sua tristeza. “Nunca disse ‘não’ a quem fosse procurar ajuda com ele. Com humildade, simplicidade, ajudou a todo mundo”, diz ela, enxugando as lágrimas. Ela conta que o professor tinha grande envolvimento com sua profissão de educador e se orgulhava de seus alunos.

Michelle acompanhou o tio até Manaus, quando ele precisou ser transferido para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital de Referência Delphina Aziz. “No hospital, quando eu vi o médico que cuidou do meu tio, não aguentei e perguntei: ‘O que o senhor fez com ele?’ Nós dois juntos, eu e o médico, choramos no corredor do hospital. Eu pude entrar na UTI e ver meu tio já sem vida. Agradeço por esse momento, por ter certeza que era ele. E o tempo todo senti-o ao meu lado”, disse ela, ao relembrar o dia da morte do tio. 

Inicialmente, a família resistiu em autorizar a transferência para a capital, mas acabou concordando, pois a equipe médica indicava que ele era jovem e deveria ter a chance de prosseguir com o tratamento. Ao chegar ao hospital em Manaus, ele ainda precisou esperar algumas horas até a liberação da vaga na UTI.

Em São Gabriel da Cachoeira há apenas uma unidade hospitalar, o HGuSGC, que é estadual e gerido pelo Exército. Não há UTI na cidade, sendo que os pacientes graves são encaminhados para Manaus, em unidade aeromédica. A viagem demora, em média, duas horas. 

Michelle diz que encontra forças na espiritualidade – a família é católica – e na vontade de ajudar seus pais, sua avó e outros familiares a superarem o trauma causado em sua família pela pandemia. Como enfermeira, quer ajudar os parentes. Ela trabalha no Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (Dsei ARN) e atua exatamente na região do Içana, onde seu tio Benjamin foi criado.

COMOÇÃO EM REDE

Quando Antônio Baniwa morreu, os encontros presenciais já estavam limitados. Com isso, as redes sociais foram o principal meio para homenagear e se despedir do professor, educador e liderança indígena.

A Seduc-AM, por meio da Secretaria Executiva Adjunta do Interior, manifestou solidariedade a familiares e amigos. A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) divulgou nota de pesar lamentando o falecimento, solidarizando-se com a família e destacando a contribuição de Antônio Benjamin para a cidade, como professor e liderança indígena. O líder indígena André Baniwa manifestou seu pesar. “Perdemos mais um Baniwa. Dessa vez um professor”! “Ele era do meu clã. Era meu tio”, disse.

 Em relato emocionante, o padre Justino Sarmento, da etnia Tuyuka, lembrou a alegria de Antônio Benjamin. “No ano de 1994, em Iauaretê (distrito indígena no Alto Rio Negro), iniciamos um trabalho com jovens que pretendiam aprofundar sua vocação no Centro de Formação Indígena (CFI). Antônio era um desses jovens, vindo da região de Assunção de Içana, do povo Baniwa. Destacava-se por ser um jovem muito animado, animava as músicas no Seminário, nas missas, nos encontros. Fez o Ensino Médio em Iauaretê. Depois, seguiu sua trajetória na educação com êxito. Toda vez que eu me encontrava com ele era uma alegria (…).”

Também professor, Gersem Baniwa, coordenador do curso de Formação de Professores Indígenas da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), enviou texto aos amigos lembrando que Antônio fez parte de uma geração que nasceu em Assunção do Içana e viveu no calor da dura batalha por direitos indígenas, principalmente direito à educação humana, libertadora e cidadã. Os dois eram primos. “Mesmo mergulhado em profunda tristeza e dor por sua partida para junto dos nossos ancestrais, Antônio continuará vivo em minhas memórias e coração pelo que ele representa”, escreveu.

Ana Amélia Handam • ISA