Memoráveis: histórias de vida de vítimas da Covid-19 no Rio Negro

Entre alguns significados do adjetivo memorável, há o que indica que essa palavra se refere ao que merece ser conservado na lembrança. E quem se esqueceria da história do indígena que conversou com o boto; da Yanomami que percorreu os caminhos próximos Yaripo, a Serra dos Ventos, como os povos dessa etnia chamam o Pico da Neblina; da mãe que mesmo sentada não parava de trabalhar e fazia seus tapetes; do artista que retratou a cosmologia de seu povo; do intelectual que deu novo significado à educação indígena; da vivência na floresta Amazônica; do prazer das narrativas. E de tantas outras histórias dos indígenas do Rio Negro interrompidas pela Covid-19. 

O dia 26 de abril de 2020 marca o início da pandemia da Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira, cidade às margens do Rio Negro, no Noroeste do Amazonas. Nessa data ocorreram os dois primeiros registros oficiais de casos da doença no município, sendo de um indígena da etnia Baniwa e de uma profissional do Hospital de Guarnição (HGu), única unidade hospitalar da cidade. 

Desde então, a pandemia – assim como em outras partes do planeta – vem deixando vítimas. 

O projeto Memoráveis – Histórias de vida de vítimas da Covid-19 no Rio Negro é desenvolvido em parceria pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas e Instituto Socioambiental (ISA), trazendo relatos sobre algumas das vítimas da pandemia nessa região do Estado do Amazonas, na fronteira com Venezuela e Colômbia. Os textos estão no site memoráveis@foirn.org.br, hospedado na página da Foirn (www.foirn.org.br).

Esse memorial tem contornos especiais, devido às características únicas da região em questão: a grande maioria dos atingidos é indígena. E muitos deles vivem em áreas remotas, o que cria uma série de barreiras à prevenção e cuidados, inclusive de acesso aos serviços de saúde.  

O projeto foi pensado como forma de homenagear as vítimas e evitar que os impactos da pandemia caiam no esquecimento. Mas, durante as conversas, o trabalho ganhou um contorno a mais: parte da história da região foi surgindo através dos relatos das vivências pessoais de cada vítima. 

Foram se revelando costumes dos povos tradicionais na floresta, o dia a dia na cidade, o movimento entre o ambiente urbano e a comunidade, a resistência de tradições, as interferências externas.  

Também aparecem nas narrativas a força do resgate das tradições do uso de chás, defumações e benzimentos para enfrentar a doença. Os relatos mostram ainda as dificuldades de acesso à saúde ou a falta de adequação do serviço à realidade local, entre outros problemas, como a necessidade de sair de casa ou das aldeias para sacar benefícios sociais na cidade, o que acentuou o risco de contágio.

A diversidade da região interferiu em como as histórias foram contadas. Algumas foram narradas por meio de entrevistas realizadas pessoalmente – seguindo os protocolos sanitários – ou por telefone. Em alguns casos, devido às dificuldades de comunicação, o relato foi redigido e encaminhado pelos próprios parentes. Também fazem parte desse mosaico textos de pessoas que têm relação de trabalho e afeto com os indígenas da região.  

Este não é um projeto já terminado, pois está aberto a escutar outras famílias e a novas contribuições. Pessoas interessadas em compartilhar suas histórias, podem entrar em contato pelo e-mail memoraveis@foirn.org.br.

Em 29 de abril, o Brasil atingiu a triste marca de 400.021 mortos pela Covid-19. Memoriais em várias regiões dão vida a esses números, dando nome e rosto a essas pessoas. O site Memoráveis caminha nesse sentido. 

Estão sendo ouvidos familiares de moradores de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, todos na região do Rio Negro. O projeto também está aberto a vítimas que nasceram ou têm suas histórias ligadas à região, mas contraíram a doença em outros lugares.

São Gabriel da Cachoeira é conhecida por ter a maior concentração de população indígena do país. São cerca de 46 mil habitantes, sendo 90% pertencentes aos povos tradicionais, com aproximadamente 26 mil pessoas vivendo nas comunidades indígenas. 

Até 26 de 2021, data que marca o período de um ano da pandemia em São Gabriel da Cachoeira, o município registrava 8.030 casos da Covid-19 e 108 óbitos, tendo atravessado altos índices de contaminação durante os picos da primeira e segunda onda da pandemia. Próximo a essa data, em 29 de abril, o país atingiu a triste marca de 400.021 mortes de pessoas contaminadas pelo novo coronavírus.

A vacinação teve início em 19 de janeiro e, até abril, cerca de 36% da população – das comunidades e urbana – já tinha recebido as duas doses.

Para se ter uma ideia do impacto da pandemia entre os povos tradicionais, das 108 mortes ocorridas em São Gabriel até essa data, 101, ou 93,5%, foram de indígenas. Das 8.038 contaminações pelo novo coronavírus registradas no município até 28 de abril, 7.044 (87,6%) são referentes também aos indígenas.  

Em Santa Isabel do Rio Negro, até 26 de abril de 2021, eram 2.692 registros e 47 óbitos, enquanto Barcelos tinha 4.056 casos confirmados e 56 mortes, conforme levantamento do Governo do Estado.  

Convivem no território desses três municípios povos de 23 etnias, cada uma com seus costumes. Tukano, Baniwa, Coripaco, Arapaso, Desano, Wanano, Yanomami, Baré, Hupda, Dãw, Tuyuka, são algumas delas. 

Parte do conhecimento desses povos só é repassada no dia a dia das aldeias, com os mais jovens acompanhando e observando os mais velhos. Caminhos na mata, o uso de determinadas plantas, a época de certos frutos da floresta. Com a perda dessas vidas, perdem-se também importantes conhecedores.

Com esses relatos fica expressa a solidariedade com as famílias pela dor da perda e registrada parte dessas histórias Memoráveis. 

Concepção do projeto

Juliana Radler • Instituto Socioambiental 

Ana Amélia Hamdan • Jornalista • Colaboradora ISA/Foirn 

Concepção do site 

Raquel Uendi