O dia de Dona Nazinha começava bem antes do sol nascer

Antes, mas bem antes mesmo do sol nascer, em alta madrugada, dona Nazinha, indígena da etnia Baniwa, já estava de pé. Era uma mulher forte, agricultora, muito ligada aos costumes indígenas da Região do Rio Içana. Por volta da 1h, ela acordava e começava a trabalhar. Preparando a quinhampira, torrando farinha, fazendo beiju, deixando tudo pronto antes dos familiares acordarem. Antes de chegar a hora de ir para a roça, onde ela cultivava mandioca, pimenta, cará, banana, outras frutas. 

Se não houvesse afazeres da cozinha, ela acordava de madrugada assim mesmo: ia tomar o banho ali por perto, chegava, esquentava quinhampira, fazia mingau, pegava o tucum e fazia artesanato até amanhecer. Fazia puçazinho – pequena rede para pegar peixes – e várias outras coisas.

Saía para a roça às 6 horas. Voltava, tomava banho, tomava caribezinho. Meio-dia descansava para logo em seguida ir para a roça de novo, por volta das 13 horas. Chegava, tomava banho de novo, tomava quinhampira e ia para a rede. Às 8 da noite já estava dormindo. 

“Duas vezes ao dia que ela ia para a roça. Eu cheguei a ver”, relata a professora Ilda da Silva Cardoso, de 43 anos. É ela quem conta sobre sua sogra Nazinha Fontes da Silva, de 96 anos, uma das vítimas da Covid-19 de São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste do Amazonas. “Durante a pandemia a gente não sabe quando e como chegou conosco. Mas chegou e passou. Eu perdi a minha sogra, meu esposo ficou muito grave. Eu mesma não fiquei muito doente, só tonteira e dor de cabeça. As minhas filhas também foram a mesma coisa”, diz. 

Dona Nazinha era de Ucuqui-Cachoeira, na região do Rio Içana, e morou muito tempo no Igarapé Aranã. Foi casada com o senhor João Fontes, que morreu em 2004 de picada de cobra. O casal teve 7 filhos, muitos netos e bisnetos. Mas somente uma neta conseguiu acompanhar o sepultamento da idosa devido às exigências sanitárias para evitar a contaminação pelo novo coronavírus. Foi tudo tão rápido que não houve tempo de avisar ou esperar a chegada de outros familiares.

Nos últimos anos, a idosa morava em São Gabriel, no Bairro Fortaleza, com a família do filho Afonso Fontes, que é casado com a professora Ilda. Mesmo depois de bem idosa, dona Nazinha ia para o sítio perto da cidade. E se queixava de cansaço só se tivesse que ficar em casa. “Antes dela falecer nós fomos para o sítio e ela queria ir comigo para a roça. Eu falei não, você não pode ir mais, fique em casa. Ela respondeu: ‘Não, eu estou cansada. Quero trabalhar. Tu não sabe trabalhar. Tu trabalha devagar, deixa eu capinar tudo para ti’, relembra Ilda. 

Quando começaram os alertas da Covid-19, a família ficou bastante assustada. No final de abril, Ilda tomou a providência de seguir com os familiares – o marido, a sogra, três filhas e um neto – para o sítio que eles têm em São Gabriel da Cachoeira, no Ramal 4, na tentativa de se protegerem. O genro, devido ao trabalho no Exército, ficava entre a cidade e o sítio.

Na noite em que saíram, o marido de Ilda, o professor Afonso Fontes, teve febre e dor de cabeça. As filhas Jucilene, Joelmara e Jucimara também passaram mal. Mas eles acharam que era gripe, pois esperavam que a Covid-19 fosse uma doença mais grave. No sítio, dona Nazinha também ficou adoentada, foi piorando e, depois de cinco dias, desmaiou. 

A família então resolveu retornar para a casa na cidade. Dona Nazinha, que estava desmaiada, precisou ser carregada. Afonso é benzedor e, mesmo estando muito doente, começou a cuidar da mãe. Nesse período, em certa noite, ele sonhou com seu falecido pai mostrando bolas com pontas, semelhantes à imagem do novo coronavírus. O idoso dizia que as pontas eram lanças que não poderiam encostar no filho. “No sonho, o pai finado ensinou oração para cortar o vírus”, revela Ilda. 

A partir daí, a família começou a desconfiar que todos poderiam ter contraído o novo coronavírus. Afonso começou a benzer e a cuidar da família com a oração aprendida em sonho. Dona Nazinha melhorou bastante, estava conversando e se alimentando. 

Ilda resolveu retornar ao sítio, pois tinha deixado lá mandioca para fazer farinha. Como a idosa estava passando bem, Afonso resolveu ir junto. Eles saíram em uma quinta-feira. No domingo, 14 de junho, eles retornavam para casa, levando beiju, quando no meio do caminho encontraram duas de suas filhas que pegaram um táxi-lotação para avisá-los: dona Nazinha havia falecido. 

Uma das netas percebeu, por volta das 2h, que a avó havia morrido. Às 4h elas acionaram a assistência social. Um médico foi ao local e fez o teste da Covid-19 na idosa, sendo que o resultado deu positivo. 

Duas das irmãs foram avisar os pais do falecimento. Jucimara ficou em casa, cuidando da despedida da avó. O sepultamento teve que ser agilizado para evitar o risco de contágio, não havendo tempo de avisar outros familiares. Além disso, naquela manhã chovia muito, o que atrasou o retorno da família à residência. Quando conseguiram chegar, já encontraram Jucimara voltando do sepultamento. “Minha sogra às vezes ficava brava, mas dava certo com as netas”, relembra Ilda.

Afonso, as filhas e o genro fizeram o teste da Covid-19, que deu positivo. Ilda achou desnecessário fazer o exame. Ela concluiu que havia contraído o novo coronavírus, já que todos da família tiveram a doença.

Em momento algum Afonso e Ilda pensaram em levar a idosa ao hospital. Segundo Ilda, isso aconteceu porque inicialmente eles não achavam que era a Covid-19. Num segundo momento, eles temiam que ela fosse intubada. Durante toda a pandemia houve relato da resistência de famílias indígenas ao tratamento hospitalar. “Acredito mais na prática do indígena”, diz.

E sobre os saberes tradicionais, Ilda aprendeu muito com sua sogra, que ensinou sobre as plantas medicinais, como fazer caxiri, bebida servida durante as festas tradicionais, a preparar quinhampira com japurá, uma fruta da qual se faz uma massa. 

“Para mim foi muito saber mesmo. Por exemplo, a gente andando no caminho, aí já vai indicar o tipo de remédio, tipo de cosmético que a gente trata a pessoa, contra espinha. Usa assim para ter força, tudo isso eles andam no mato falando essas coisas. A minha sogra foi assim também quando eu cheguei com ela. Ela me indicava muitos remédios contra a picada de cobra, diarreia, era de tudo mesmo”, diz. “Indígena quando nasce e cresce, ele não tem tempo de esperar quando ele tiver grande para ir trabalhar. Ele nasce, cresce e quando ele começa a saber fazer alguma coisa, ele já vai aprender, ir para a roça, conhecer. Porque é assim”, completa. 

E mesmo trabalhando muito durante a vida toda, Dona Nazinha não deixou de apreciar as festas. “O que ela gostava mais de fazer? Ela gostava de fazer caxiri, guardar festa, fazer preparação antes da festa, quando meu sogro estava vivo iam para a pescaria moquear peixe. Deixar tudo preparado antes da festa”, conta a professora Ilda. 

Ana Amélia Handam • ISA