Moura: comerciante de sucesso foi uma das primeiras vítimas da Covid-19

Desde muito pequeno, Raul Maragua Moura, de 26 anos, acompanhava o pai no trabalho de comerciante. Para comprar piaçaba, peixe ou caça, andando em caminhos nos arredores de São Gabriel da Cachoeira (AM), estavam sempre juntos. “Sou comerciante desde pequeno. A gente foi criado assim. Com certeza fico orgulhoso desse pai. Acompanhei ele crescendo desde lá da lojinha. Foi esforço dele, mérito dele”, diz. Raul é filho de Narciso Lopes Moura, de 53 anos, indígena da etnia Tukano que faleceu vítima da Covid-19 em 10 de maio de 2020, no Dia das Mães. O filho Raul o acompanhou enquanto pode: foi ele quem levou o pai até a unidade de saúde, de onde ele foi levado para o hospital onde faleceu.

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Raul Moura, de 26, perdeu o pai
Narciso Moura

Narciso Moura era conhecido na cidade apenas pelo sobrenome Moura e foi um dos grandes comerciantes do município. Começou vendendo piaçava, peixe, caça. Depois, o comércio foi crescendo. Deixou o supermercado Moura, no Areal; a casa de shows Mansão, que fica ao lado do supermercado; um lava-jato; terrenos, automóveis. E deu início ao projeto do Hotel Três Irmãos – em homenagem a seus três filhos.

“Ele acostumava acordar cedo, acordava 4h. Me acordava, eu era pequeno, saía junto com ele. Ele era ativo, bem determinado em fazer as coisas dele. Ele ficava na loja, ou minha mãe ficava. Sempre um ajudando o outro”, relata Raul sobre o dia a dia de seu pai. 

Moura era casado com Anita Faria Maragua, da etnia Baré, e eles criaram quatro filhos e tiveram seis netos. Rodrigo e Michele são filhos que Anita teve antes de se casar com Moura. Depois, o casal teve Raul e Raisson. 

Rodrigo era enfermeiro e morreu este ano, no final de março, mas não foi vítima da Covid-19. Raul acredita que a tristeza pela perda do filho foi um dos motivos que fez Moura não ter forças para lutar contra a doença. “Meu pai estava fragilizado por perder meu irmão, estava desmotivado. Não teve forças para reagir”, diz.  

O comerciante não costumava falar muito de seu passado, sua infância. Mas do rigor dos padres no internato no distrito de Pari-Cachoeira, também em São Gabriel da Cachoeira, Moura não esqueceu. 

“Falava que lá era muito rigoroso, que só davam a comida mesmo. E naquele tempo era tudo muito precário e que ele só queria ter um lugar para dormir e alimentação. Ele e meus tios eram muito prestativos. E os padres ajudavam bastante. Por isso eles sempre são muito bem recebidos. Os padres foram ajudando, eles foram estudando. Meu tio até se formou professor. Depois incentivaram a se alistar”, relembra Raul sobre os poucos relatos que ouviu do pai. 

A radialista Aldecimar Moura, da etnia Tukano, é prima de Raul e ajuda nesse relato, falando sobre a história da família. Ela conta que seus avós moravam em comunidade próxima a Pari-Cachoeira, onde nasceram os irmãos Romildo (pai de Aldecimar), Eucrisia, Jairo, Maria Auxiliadora, Áurea Maria, Narciso e Jesurila. A maioria deles estudou no internato dos padres salesianos. 

Com a vida muito difícil, os pais das crianças decidiram vir para São Gabriel com a intenção de ter uma vida melhor e, em seguida, buscar os filhos. “Vieram trazendo só a filha mais nova, com a esperança de construir casa, voltar e buscar os filhos”, diz Aldecimar.

Nessa época, Romildo já era professor e tinha seguido para São Gabriel à procura de trabalho. Estava dando aulas na comunidade Jupati, abaixo do Curicuriaí, no Baixo Rio Negro. Lá ele conheceu a sua esposa. Quando seus pais chegaram à cidade, acabaram indo também para Jupati. Depois, construíram uma casa na cidade, no Bairro Daburu. 

Narciso Moura só veio para São Gabriel aos 18 anos, para servir ao Exército. Fez curso de cabo e seguiu para Manaus. Ficou um tempo lá, deu baixa e voltou para São Gabriel já com a esposa Anita, que é da região de Cucuí. 

Se Raul não sabe muito da infância do pai, sabe tudo da história dele como comerciante. Trabalho é a palavra que ele mais usou para se referir ao pai. Moura sempre trabalhou muito: acordava cedo para buscar mercadoria e continuava com seus afazeres durante o dia. Mesmo depois de ter o comércio estabelecido, continuava a dirigir caminhão, buscar mercadoria, atender os clientes.

Seu primeiro mercado foi no Bairro Dabaru. Depois, quando surgiu o Bairro Areal, a família se mudou para a nova área. Moura abriu comércio no endereço e os negócios foram crescendo junto com o bairro, com a cidade. Inicialmente, trabalhava com piaçava, peixe, caça. Depois foi diversificando as vendas.

Indígena da etnia Tukano, Moura falava a língua de seu povo, mas não a ensinou para seus filhos. Da parte tradicional, o que ele mais apreciava era a comida: a mujeca, a quinhampira, os peixes preparados por sua mãe. 

Raramente, Moura saía para descansar e, quando isso acontecia, o destino era o sítio da família, na estrada que segue até o local conhecido como Cachoeirinha dos Padres. Nadava no igarapé, pescava, levava a rede dele.

 “Da tradição indígena, não ensinou a gente a falar a língua dele. Falava com outras pessoas, mas guardou para ele. No dia a dia, ia passando os ensinamentos dele. Ensinou tudo de trabalho, da vida ensinou tudinho. Sempre trabalhar, a nossa responsabilidade, acordar cedo, trabalhar para o nosso próprio bem”, diz Raul.  

A família acredita que Moura contraiu o novo coronavírus no trabalho, na movimentação da loja. Ele começou a apresentar febre, tosse. Ainda era o início da crise em saúde e os parentes acreditavam que ele poderia estar com dengue ou malária. Entretanto, foi piorando e passou a ficar isolado no quarto, tratando-se com chás caseiros. “Minha mãe não entrava (no quarto), porque aí já começamos a desconfiar da doença. Eu entrava, conversava, via a expressão dele, tossia bastante, febre”. 

Na cidade, como é bastante relatado, há uma resistência em procurar o atendimento médico. E foi o que aconteceu também com Moura. Até que chegou um dia que Raul conseguiu convencê-lo a ir ao posto de saúde. Na unidade do Bairro Areal não tinha médico e os dois seguiram para outro posto, no Centro, onde foram atendidos. Na ocasião, os profissionais não fizeram o teste em Moura, mesmo ele apresentando sintomas da Covid-19. Segundo Raul, foi receitado antibiótico amoxilina para seu pai. “Era no início da pandemia, ainda não tinha o tratamento que tem agora”, diz.

Moura melhorou, mas a família continuou preocupada. Uma farmácia da cidade começou a aplicar o teste da Covid-19 particular, pelo valor R$ 500. A família quis comprar, mas os exames acabaram. 

“Ele foi mantendo o quadro. Febre vinha, febre voltava: ficou assim uns 15 dias”, relembra. No dia que ele passou muito mal, a família ligou para Michele, que é técnica em enfermagem. Ela foi até a casa de Moura, verificou que a saturação – quantidade de oxigênio no sangue – estava baixa. 

Eles então foram para a unidade de referência para a Covid-19, adaptada na Escola Estadual Irmã Inês Penha. “Eu fui conversando com ele, eu dirigindo e ele do meu lado. Eu via que ele estava normal. Na frente da Inês Penha, ele perdeu as forças”, relembra Raul. O comerciante foi atendido e encaminhado rapidamente para o Hospital de Guarnição do Exército (HGu), única unidade hospitalar da cidade.

No hospital, ninguém da família pôde entrar como acompanhante. Os boletins informativos eram passados às 7h e às 19h aos familiares que ficavam em uma barraca em frente ao local. Moura deu entrada no hospital por volta das 17h do dia 9 de maio, véspera do Dia das Mães. Ele chegou a melhorar. No domingo, Michele conseguiu ver Moura, levou um celular para ele. “Ele disse para ela que estava bem, respirando direito, e queria ir embora. Ele almoçou normal. Às 19h fomos ter notícias dele”, conta. Depois de receber as informações, ele seguiu para casa e, por volta das 20h30, recebeu a notícia de que Moura tinha tido uma parada cardíaca fulminante e morrido. 

O teste da Covid-19 foi feito após o óbito e deu positivo. O enterro aconteceu rapidamente, ainda de madrugada, por volta das 3h, atendendo às regras sanitárias.

Enquanto Moura recebia os cuidados de Raul e Michele, seu outro filho Raisson tentava retornar de Manaus para São Gabriel, mas encontrava dificuldades, pois as embarcações e voos estavam suspensos como medida para evitar o contágio do novo coronavírus. 

Finalmente Raisson conseguiu embarcar na balsa que trazia pacientes recuperados que estavam retidos em Manaus desde o início da pandemia, em viagem autorizada pela Secretaria Municipal de Saúde. Ele veio como acompanhante de seu tio Romildo, que estava em tratamento na capital.  

A embarcação chegou ao Porto de Camanaus, em São Gabriel, na noite do Dia das Mães. Mas os passageiros demoraram muito no porto, pois tiveram que passar pela barreira sanitária. No local, o sinal de celular é muito ruim, a família não teve como avisar a Raisson sobre a morte. Ele não chegou a tempo da despedida: encontrou os parentes ainda no cemitério, mas o pai já havia sido sepultado.

Hoje, a família toma conta dos negócios de Moura. Raul e sua mãe Anita seguem trabalhando em São Gabriel. Raisson, além de estudar odontologia, trabalha também com os familiares, dando apoio em Manaus. “Vou terminar o Hotel 3 irmãos para meu pai. Era algo que ele queria muito”, diz Raul, bastante emocionado ao relatar sobre como a pandemia da Covid-19 atingiu sua família.

Ana Amélia Handam  • ISA