Conhecedor das árvores, das canoas e dos diálogos

O indígena Moisés da Silva, de 52 anos, da etnia Baniwa, era capaz de fazer uma canoa a partir de um tronco. Era esse um de seus saberes. Entre outros afazeres que tinha, ele era serrador na comunidade de Tunuí Cachoeira, no médio rio Içana, em São Gabriel da Cachoeira (AM). “O serrador normalmente conhece os vários tipos de árvores e madeiras e sabe escolher qual é boa e qual é ruim. Aprende na prática a tirar madeira, tábua, pena-manca, ripão, esteio. Para canoa, para casa da comunidade”, explica o professor Daniel Benjamin da Silva, também da etnia Baniwa, genro de Moisés. 

Moisés carregava muitos outros conhecimentos. Não sabia ler ou escrever, mas talvez não seja correto chamá-lo analfabeto: falava as línguas indígenas Baniwa e Nheengatu, além do português. Dessa forma, mantinha um bom diálogo com outros povos do Rio Negro, região onde convivem indígenas de 23 etnias. 

Esse foi outro saber que Daniel diz ter observado no sogro. “Era muito calmo, tinha jeito de lidar bem com maioria. Era analfabeto, mas meu sogro tinha forma de como relacionar com outras pessoas. Ele falava Baniwa, Nheengatu, conseguia se relacionar bem com outros grupos do Rio Negro. Aprendeu o português na prática andando por onde ele andou. Levou como experiência prática para socializar e vivenciar nos meios por onde ele teve a vida. Tive o aprendizado da paciência com ele, na forma como lidar com o outro”, diz. 

Ele ainda era agricultor, bom pescador. Foi capitão (liderança) em Tunuí Cachoeira, comunidade que adotou como sendo sua desde que se casou com dona Letícia Garcia, também Baniwa. Talvez tenha preferido se unir aos sogros e cunhados porque perdeu os pais quando ainda era muito pequeno.

Moisés morreu em 4 de maio, com falta de ar, em São Gabriel da Cachoeira, poucos dias após a confirmação dos primeiros casos de Covid-19 na cidade. Os familiares chegaram a levá-lo ao hospital, porém não houve tempo de salvá-lo. Tudo indica que ele teve Covid-19, mas a família relata que não foi feito o teste para identificar a doença. No atestado de óbito, conforme Daniel, constam causa indeterminada e suspeita de Covid-19. 

O professor até acredita que seu sogro estava predestinado à morte, mas não se conforma com a perda dele. Ao relatar seus últimos momentos, a tentativa de socorrê-lo, precisa parar de falar, emocionado. 

“Ele que conhecia, somente ele tinha aquela habilidade”, diz Daniel Benjamin, sobre os conhecimentos de seu sogro. Para aprender, seriam necessários vivência, convivência e interesse. Daniel Benjamim explica que, por isso, o termo biblioteca viva é usado em relação aos indígenas, pois muitas vezes seus saberes não estão registrados. 

Moisés tinha dois filhos – Sílvia e Edmilson – e três netos. Criou a família em Tunuí Cachoeira. Ele era evangélico e apreciava o dia a dia da comunidade, os encontros coletivos para o mingau da manhã. Aos domingos, participava dos almoços comunitários. Também gostava de acompanhar os jogos de vôlei e futebol, além dos festivais de dança tradicionais.

Mas 2019 foi um ano que anunciou mudanças. Edmilson ia servir o Exército e teria que vir morar em São Gabriel em 2020. Daniel Benjamim também vivia em Tunuí e decidiu vir para a cidade com a mulher Silvia e os três filhos, pois havia conseguido uma vaga de trabalho. Por fim, dois irmãos de Moisés que antes moravam na Colômbia estavam em uma comunidade perto de São Gabriel. 

Ele então decidiu que também iria morar um período na cidade. No final de 2019 e início de 2020, ele veio para a sede do município a passeio, acompanhando a família. Nessa época, contraiu dengue, apresentou manchas no corpo e ficou de cama. Melhorou e retornou para a comunidade, pois tinha que olhar a casa, a roça, o lugar de pesca. Sua mulher Letícia relatou que ele deu mostras de muita tristeza por estar longe da família e parecia não ter se recuperado totalmente da dengue. Logo em seguida, quando os alertas sobre a Covid-19 já tinham começado no país, eles vieram de mudança para São Gabriel.

Ao relatar como a Covid-19 chegou na sua família, Daniel Benjamim acaba traçando um panorama sobre a pandemia em São Gabriel e as dificuldades de se conter a contágio. Alguns dos fatores são a estrutura insuficiente dos órgãos de saúde e o modo de vida da região.

Entre a segunda quinzena de abril e os primeiros dias de maio, ao menos cinco pessoas da família de Daniel ficaram doentes: ele mesmo, seu sogro Moisés, seus pais e seu irmão. Os sintomas eram os de uma gripe, semelhantes aos da Covid-19. Mas ninguém tinha certeza do que era. 

Os familiares de Daniel moram muito próximos uns dos outros, o que é comum na cidade. A casa dele fica em um terreno no Bairro Areal onde também estão construídas as residências de seus pais e a de um irmão. No total, nesse lote, estavam vivendo 16 pessoas. 

Só no imóvel do professor eram oito pessoas: ele, a esposa, os três filhos, os sogros e o cunhado. Esse já era um fator de risco para o contágio da Covid-19.

Além disso, três irmãos de Daniel trabalham em serviços de saúde, sendo que dois deles continuaram circulando normalmente entre seus ambientes de trabalho e o domicílio. A outra irmã estava de licença médica. Edmilson também manteve suas atividades. 

Quando alguns deles começaram a apresentar os sintomas gripais, chamaram o serviço de saúde que foi estruturado no município para atender a casos da Covid-19. Os profissionais foram até o local, mas Daniel Benjamin considera que não foi dada a resposta adequada. “Inicialmente, fizeram só o cadastro”, disse. 

Seu sogro foi piorando, mas resistia a ser levado ao hospital e a tomar remédios caseiros oferecidos por sua filha e sua mulher. Quando tinha pequenas melhoras acabava se expondo, indo trabalhar na casinha que estava construindo no bairro Areal. A família acredita que o fato de ele ter tido dengue também dificultou a reação dele. 

Na madrugada de 4 de maio, ele apresentou uma crise de falta de ar. Os familiares chegaram a levá-lo, já desmaiado, ao hospital, onde os médicos tentaram reanimá-lo.

Não teve jeito. Moisés não resistiu. O enterro, devido aos protocolos sanitários, foi feito rapidamente, no mesmo dia. 

Depois disso, o quadro de saúde do irmão de Daniel agravou-se. O serviço de saúde foi ao local e aplicou o teste nele, sendo que o resultado foi positivo. Nenhuma outra pessoa da família fez o exame. “Deu positivo no meu irmão e conformamos que nós todos tínhamos pegado a Covid-19”, diz. 

Daniel Benjamim integra grupo criado pela liderança indígena André Baniwa para monitorar os casos da Covid-19 em São Gabriel e no território indígena, além de buscar estratégias de proteção, como o uso de plantas tradicionais e outras práticas. Mas, quando Moisés faleceu, a família ainda não tinha muitas informações sobre os tratamentos indígenas contra a nova doença. 

Na percepção do professor e de outros indígenas, a Covid-19 apareceu na região ainda em fevereiro, bem antes da confirmação oficinal dos dois primeiros casos, em 26 de abril. “Meu sogro resistia a ir ao hospital, pois falava que o vírus estava circulando lá e poderia contaminar a nós todos. A gente ainda não sabia, mas parece que nós todos já estávamos com a doença”, lamenta.

Ana Amélia Handam • ISA