A Yanomami que nasceu no caminho do Yaripo, a Serra dos Ventos
A comunidade de Maturacá, no Território Yanomami no Amazonas, está cercada de serras que, mesmo a distância, parecem observar e proteger os indígenas. Um desses maciços é o Masiripëwei, mais próximo ao Yaripo, a Serra dos Ventos, como os Yanomami chamam o Pico da Neblina – ponto mais alto do Brasil. E é ali, no caminho para o pico, em terras altas e de clima frio, em meio à vegetação e rios exuberantes da floresta Amazônica, que nasceu e viveu a matriarca da família Pereira Góes.
Sua data de nascimento ninguém sabe ao certo. Mas o dia do falecimento, seu filho José Mário Pereira Góes não esquece: 7 de janeiro de 2021. Ele conta que a mãe tinha aproximadamente 65 anos e é uma das vítimas da segunda onda da pandemia da Covid-19 no Noroeste do Amazonas. Chegou a ser transferida da comunidade até o Hospital de Guarnição do Exército (HGu), em São Gabriel da Cachoeira, mas não resistiu. Em respeito aos costumes Yanomami, não serão divulgados nome e imagens da matriarca Yanomami.
José Mário é uma das lideranças de seu povo e presidente da Associação Yanomami do Rio Cauburis e Afluentes (Ayrca). Traz na memória a história da mãe: ela nasceu no Masiripëwei e costumava andar até o Irokai – que em português significa macaco guariba -, onde havia roça com banana, mandioca. Também seguia até a Serra do Opota, a Serra do Tatu, nos caminhos de seu povo.
Até que os padres Salesianos chegaram à região e levaram alguns indígenas para o internato em Santa Isabel do Rio Negro. Ela estava entre os internos e, com os padres, aprendeu a ler e escrever o português, mas nunca desaprendeu a língua de seu povo. Não gostava do internato, sentia falta dos alimentos da floresta, da mata. No colégio ela conheceu seu marido, um dos tuxauas (líder) da etnia. Juntos, voltaram a viver no Território Yanomami e tiveram sete filhos: cinco homens, duas mulheres.
Ali ela gostava de ficar no sítio na floresta. “Tirando cipó no mato: a vida dela era viver assim num lugar tranquilo como sítio na mata mesmo, alimentação dela era peixe embrulhado com banana, com beiju. Plantava muita macaxeira, muita bananeira, milho, algodão”. Gostava do mingau com vinho de açaí, com vinho de bacaba: bebida não alcóolica com frutos da região. Ficou viúva em 2018 e, desde então, não gostava de participar das festas na comunidade.
Conhecedora das tradições, vigiava para que fossem cumpridos os cuidados quando a menina menstrua ou quando os bebês nascem. “A criança nasce hoje você não pode sair para o mato, não pode matar nenhum animal, não pode pescar. Não pode cortar com terçado, nada. Muita coisa ela ensinou para a gente poder seguir o que veio da nossa cultura”, diz José Mário.
Sabia das plantas: conhecia as regras das bananeiras, que não podem ser balançadas com as mãos, mas só pelo vento. Do contrário, não crescem direito. Planejava fazer redes com o algodão que plantava, mas esse projeto foi interrompido pela Covid-19, que contraiu no final de 2020.
Desde o início da pandemia, os xamãs Yanomami agiram para proteger o território, sendo que alguns indígenas chegaram a entrar mais para dentro da floresta na tentativa de se esconderem da Covid-19. Mas não teve jeito: a xawara (doença) chegou. Segundo levantamento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), no território Yanomami no Amazonas e Roraima foram registrados, até 27 de abril de 2021, 1.640 casos da Covid-19, com 13 óbitos. Entidades que trabalham com os indígenas apontam que há subnotificação. Os povos indígenas aldeados estão entre os grupos considerados prioritários para receber a vacina contra a Covid-19. Na área do Dsei Yanomami, até 27 de abril, 30% do público-alvo havia recebido as duas doses do imunizante. A vacinação começou no início de 2021: não deu tempo da matriarca tomar a dose.
José Mário mora em Maturacá e conta que em dezembro de 2020 saiu da comunidade para participar de reunião da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) em São Gabriel da Cachoeira (AM). Quando retornou, encontrou a mãe já em estado grave: o teste da Covid-19 tinha dado positivo, mas ela não queria se tratar. “Não aceitava remédio da farmácia, nem chá”, disse. Os filhos cuidaram dela, fizeram massagens para manter a respiração. Ela não queria sair da comunidade, mas a família decidiu pela transferência para o HGu. O transporte foi feito em aeronave do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei Yanomami).
“Ela falou para mim antes de sair da comunidade: ‘meu filho, há muito tempo essa maldita da doença me acabou. Nem médico vai dar jeito, só vai chegar o meu óbito’”, relembra. Ela foi internada em 17 de dezembro e faleceu em 7 de janeiro.
Após a morte, o hospital apresentou resistência em liberar o corpo para ser levado ao território indígena, devido aos protocolos sanitários. Mas a família contou com o apoio da Fundação Nacional do Índio (Funai) e Instituto Socioambiental (ISA) para conseguir a liberação. No mesmo dia, a matriarca foi levada para Maturacá, onde foi enterrada. Em tempos normais, seria cremada.
“Não podia fazer cremação da mamãe, isso é um veneno. Enquanto a doença está assim, faz cremação, a doença piora e muita gente morre. Se não fosse essa doença, a gente ia cremar ela. Ela falava com a gente: no dia em que eu morrer, nem pensa em me enterrar, pode cremar”, relembra.
A matriarca que nasceu e viveu nas terras altas do Território Yanomami, agora descansa perto de seu povo. “Ela está no lugar onde nasceu e viveu. É muito importante para nós deixarmos nossa mãe, nosso pai, nosso filho, nosso irmão, perto da gente. No cemitério onde não nasceu, não é bom. Não nos conformamos com isso. Perto da nossa casa, tudo bem, sem problema isso é uma alegria”, diz a liderança Yanomami.