Da Colômbia ao Brasil: filho registra a história do pai vítima da Covid-19

A história de Mateus Gonçalves, indígena da etnia Coripaco, começa na Colômbia e passa pela floresta Amazônica até chegar ao Brasil, na região do Rio Içana, onde ele conheceu sua mulher Rosa Garcia, da etnia Baniwa, na comunidade de Tunuí Cachoeira, município de São Gabriel da Cachoeira (AM). Foi ali que ele passou a maior parte de sua vida e formou família. Ao longo do tempo, teve diversos afazeres: foi agente de saúde, comerciante, agricultor, liderança indígena. E o que gostava mesmo era entrar para o mato, andar pela floresta para cultivar plantas, viajar com a família de canoa contando histórias, mostrando as árvores, repassando saberes.

Artur Garcia Gonçalves, doutorando da UnB. Filho de Mateus Gonçaves, vítima da Covid-19

“Tudo é aprendizagem para mim”, diz Artur Garcia Gonçalves, indígena da etnia Baniwa, professor e doutorando em linguística na Universidade de Brasília (UnB). Ele é o filho mais velho de Mateus e está escrevendo a história de seu pai, que estava com 74 anos e morreu, no final de abril, vítima da Covid-19.

“Eu estou escrevendo a memória do meu pai, estou registrando. Começando do que ele contou, o que fez, como lutou. Esse é meu pensamento: acho importante registrar a memória do meu pai. Eu comecei a contar a trajetória, o que aprendi com meu pai, a cultura Baniwa Coripaco, que alguns falam serem duas culturas, mas são muito parecidas. Tudo é aprendizagem para mim. Ele dizia que eu precisava da minha cultura, mas também do outro lado para conseguir viver no mundo. Tudo ele me contava: história, cultura, tradição. Alguma coisa de viagem que eu fiz com ele”, explica.

Artur fala do pai com entusiasmo, relatando suas histórias, algumas delas resgatadas com a ajuda de sua mãe. Começa contando que Mateus nasceu na comunidade Chaquita, na Colômbia, (São Gabriel da Cachoeira fica na tríplice fronteira Brasil-Venezuela-Colômbia), sendo o primeiro de 12 irmãos. 

Quando jovem, ele estudou em uma turma indígena e se formou na 8ª série, como técnico em enfermagem, uma grande realização para a época. O acesso ao ensino era bastante restrito, então ter esse grau de instrução pode ser comparado a se formar no ensino superior. “Eu vi diploma dele. Por isso eu acredito quando minha mãe fala”, diz. 

Logo que terminou os estudos, foi chamado para atuar como agente de saúde, função que exerceu por cerca de sete anos. Depois começou a trabalhar piaçava para repassar aos comerciantes, fazendo troca ou venda, atividade muito comum na região naquele tempo. 

O negócio deu tão certo, que Mateus passou a ter loja própria e até precisou de reforço de mão de obra. Veio para a região do rio Içana, no Brasil, procurar parentes para trabalhar com ele. Chegou a Tunuí Cachoeira e, de lá, levou entre 10 e 15 pessoas para reforçar o comércio na Colômbia. Foi nessa viagem que ele conheceu Rosa Garcia, que vivia com a família na comunidade brasileira. Ela chegou a seguir para o país vizinho com o companheiro, mas depois de aproximadamente um ano os dois voltaram para Tunuí Cachoeira, para perto da família de Rosa. O casal teve 8 filhos e 10 netos.

“Chegou meu pai para cá e teve comércio, mas não teve o mesmo sucesso que para lá. Mas ele sempre tinha um comerciozinho dele”, diz. Além disso, ele sempre foi agricultor, trabalhando na roça ao lado de dona Rosa. 

Já no Brasil, ele começou a participar do movimento indígena, agindo principalmente pela melhoria da saúde e educação. Foi ativo no apoio à fundação da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e ajudou na criação da associação que depois transformou-se na Organização Indígena da Bacia do Içana (Oibi). Também articulou para a estruturação da Escola Baniwa Coripaco Pamáali, sendo o primeiro presidente da Associação Conselho da Escola Pamáali (Acep).  “Sempre participava das reuniões, dava contribuições. É muita coisa para contar”, diz o filho.

Mateus era um indígena que gostava de viajar, levando a família toda na canoa. “Gostava mais de ir para dentro da floresta. Qual era o nosso objetivo de ir para a floresta: era para caçar para a gente comer, pegar plantas comestíveis, preparar roça, visitar os parentes. Essa era a nossa viagem”, relembra. 

Preferia ficar mais isolado, em um sítio próximo da comunidade. De lá, saía para a floresta, ia vigiar suas plantas medicinais. Ele também carregava esse saber: trabalhava com plantas diversas, cipós, não só piaçava e mandioca.  Esse conhecimento ficou com dona Rosa, que tratou de muita gente durante a pandemia da Covid-19. Segundo Artur, sua mãe acumula ao menos 60 tipos de remédios e é chamada por alguns de doutora. 

Nas viagens, no dia a dia, na convivência, Mateus ia repassando os aprendizados, como se contasse uma história. Mas o professor teme que parte do conhecimento indígena se perca. “Nós indígenas, a gente não tem registrado nos livros todo o conhecimento. Mas nem tudo foi perdido porque o conhecimento é repassado para os filhos. Só que nem todas as pessoas repassam hoje em dia, pois a mudança cultura é muito forte. E tem influência da escola, da igreja”, preocupa-se. 

Com tantos saberes, Artur Gonçalves transita entre o mundo dos indígenas e não indígenas. Pesquisa sobre linguística na UnB, mas também, se precisar, consegue fazer uma canoa. “Se precisar de canoa, eu sei, eu pratiquei com o meu pai. Não tenho teoria, mas prática. Ele falava que tem que procurar um pau bem preparado para isso. Tem técnica”, diz. Mateus dizia aos filhos que, para eles falarem que são Baniwa, precisavam dominar certos saberes. Assim, eram todos incentivados a aprender a arte dos tradicionais cestos Baniwa, a fazer o tipiti para espremer a massa da mandioca e até ser capaz de levantar uma casa. 

Com os filhos crescendo e precisando continuar os estudos, Mateus e Rosa passaram a ter casa na sede do município de São Gabriel da Cachoeira. Durante o ano letivo, eles ficavam na cidade e, durante as férias, retornavam a Tunuí. 

No começo de 2020, quando tiveram início os alertas sobre a Covid-19, Mateus estava em São Gabriel da Cachoeira. Ele e Rosa seguiram para a comunidade em março, na tentativa de se protegerem. Não teve jeito: o novo coronavírus viajou rapidamente no território indígena. Mateus acabou contaminado e faleceu no final de abril, sendo uma das primeiras vítimas da pandemia na região. Os dois primeiros casos da doença foram registrados pela Secretaria Municipal de Saúde (Semsa) em 26 de abril.

“Ele começou a apresentar sintomas, ter febre, dor de cabeça, falta de ar. Minha mãe pensava que era doença normal, a gente nem esperava essa aí. Chegou na comunidade mais rápido que o esperado porque o pessoal descia bastante para a cidade”, diz. 

Artur estava em Brasília e, mesmo a distância, articulou junto com os irmãos para que o resgate do Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (Dsei ARN) buscasse seu pai. A equipe foi ao local, mas não houve tempo de salvar Mateus. “Isso é triste. Agora é que eu estou começando a conseguir me concentrar. É uma tragédia para a gente”, diz. 

Segundo o professor, seu pai tinha hérnia e pressão alta, mas estava bem antes de contrair o novo coronavírus. “Ele estava bem e morreu por causa da Covid. Ele viajava, comia bem, tomava remédio caseiro. Tudo isso protegia”, diz. 

Devido às restrições de viagens como medida para conter o avanço da doença, Artur Gonçalves só conseguiu chegar a São Gabriel da Cachoeira no final de maio. Não se despediu do pai, mas vem fazendo companhia a Dona Rosa. 

Entre os filhos do casal, três estavam em Tunuí Cachoeira e conseguiram se despedir do pai: Orlando, Benvindo e Ivan Garcia Gonçalves. A filha Elza estava no Alto Içana, em comunidade de difícil acesso; Ana, Sílvia e Augusto estavam em São Gabriel da Cachoeira.

“Meu pai já sabia que ia morrer.  Ele chorou para o meu irmão e disse ‘eu queria só ver todos vocês para eu pegar na mão de vocês e dar conselho antes de partir’. Isso que dói: ele querer pegar minha mão, abraçar, dar um beijo. Queria me ver. Pouco antes de morrer, cinco minutos antes, ele pegou na mão dos meus irmãos que estavam presentes e falou com cada um. Depois falou ‘tudo que eu passei para vocês, passa para seu irmão e leva a vida de vocês’”, conta Artur. Mateus foi sepultado em Tunuí Cachoeira, lugar que escolheu para viver ao lado de Rosa e dos filhos.

Ana Amélia Handam • ISA