Dona Madalena era mãe de três filhas e guardava ligação especial com elas

Ficar sem fazer nada era algo que dona Madalena da Silva Sampaio, da etnia Arapasso, não conseguia. Acostumada a trabalhar na roça e a cuidar da família a vida toda, ela estava sempre fazendo alguma coisa. Mesmo sentada, trabalhava: gostava de fazer tapetes de retalhos costurados à mão. O último tapete que começou a fazer ficou inacabado. Dona Madalena tinha 74 anos, foi vítima da Covid-19 e acabou falecendo em 26 de junho após ser internada no Hospital Irmã Edwiges Maria, em Santa Isabel do Rio Negro (AM), cidade onde ela morava.

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Último tapete feito por Dona Madalena ficou inacabado

“Dentro de casa, ela gostava de fazer tapete de retalho. Tanto que ela foi embora de nós e deixou um pela metade. Um tapete de retalho”, conta Anair da Silva Sampaio, da etnia Tukano, filha do meio de dona Madalena. Ela não consegue segurar as lágrimas. “São lágrimas de saudade. Fizemos tudo o que foi possível”, diz. “Vou guardar a lembrança boa do sorriso dela, os momentos bons. Mesmo no sofrimento, ela tinha um tempinho para esquecer as dores e sorrir no nosso meio, contar histórias. Gostava de estar com a gente. Nas nossas conversas, era como se fosse uma menina que nem a gente era”, relembra. 

Dona Madalena teve três filhas: Maria Nildes, Anair e a caçula Maria Joana. As irmãs são unidas e sempre tiveram cuidados com a mãe, mesmo depois de saírem de casa. 

Anair estuda serviço social e mora com sua família em São Gabriel da Cachoeira, que fica a cerca de seis horas de Santa Isabel, subindo o Rio Negro, e visitava a mãe sempre que podia. Passaram o Natal de 2019 juntas. Essa foi a última vez que elas se encontraram. Quando a filha do meio se preparava para ir novamente ver a mãe, surgiu a pandemia e as viagens foram suspensas. As outras duas irmãs residem em Santa Isabel. A caçula Maria Joana morava com a mãe e era quem mais cuidava dela.   

Dona Madalena era nascida na região do rio Uaupés, em comunidade indígena no município de São Gabriel da Cachoeira, mas ainda era pequena quando seu pai, depois de uma briga, decidiu descer o rio até Santa Isabel. Na cidade ela ficou e casou-se com Ricardo Sampaio, da etnia Tukano. Juntos, tiveram as três meninas. 

Anair lembra dos pais sempre trabalhando na roça. “Os dois eram agricultores. Moravam em Santa Isabel e tinham roça lá.  A atividade deles durante toda a vida deles foi roça, pescaria. Foi desse jeito assim que eles criaram a gente, nós três.  A rotina deles era acordar cedo, ir para a roça. Os indígenas vão todo dia capinar, plantar, derrubar, fazer farinha. Na época, quando nós éramos meninas, eles não eram aposentados. Papai ia pescar. A gente sobrevivia da pescaria do papai. Ele não vendia, era só sobrevivência mesmo. Às vezes tinha o que comer, às vezes não tinha. Foram tempos difíceis. Começou a melhorar um pouquinho depois que papai aposentou. Na época, Santa Isabel era só uma comunidade pequena. Com o passar dos anos, foi crescendo. Assim que era”, conta.

As filhas ensinaram a mãe a ler. Dona Madalena tentou estudar, mas o marido adoeceu e ela interrompeu as aulas para cuidar dele. Com o tempo, ela tomou gosto pela leitura e acompanhava principalmente as publicações religiosas. “Eu perguntava: ‘Mãe, a senhora entende o que está lendo?’ Ela respondia: ‘Entendo mais do que tu.’

Essa ligação entre mãe e filhas era intensa. Não adiantava nada tentar esconder algo de dona Madalena, que ela sempre descobria, mesmo que fosse através de sonhos. “Quando eu estava doente, eu dizia que estava bem porque não queria preocupá-la. Mas minha irmã dizia: mana, ela sabe que tu tá doente. Fala a verdade.  Mamãe nunca se enganava com a gente. Ela tinha coisas de sonho, quando uma de nós estava com problema. Ela sempre dizia que não adiantava esconder nada porque ela via através dos sonhos”, relembra Anair. 

Há cerca de três anos Dona Madalena sofreu uma queda e ficou mais debilitada, passou a sentir muitas dores. Em seguida, apresentou pedras nos rins e na vesícula.   

Mesmo assim, não gostava de ficar quieta. Quando as dores melhoravam, ela queria lavar, varrer, capinar o quintal. Era bastante exigente: quando as filhas faziam o trabalho, dizia que não estava bom e ia ela mesmo refazer. Além disso, tudo tinha que ser feito quando ela mandasse. “Era muito teimosa, a gente pedia para ela não sair, mas não adiantava.” Ela também era carinhosa, gostava de abraçar as filhas, colocar no colo. Adorava ficar perto da família, brincar e rir. 

Não gostava de sair, era mais reservada. Por isso Anair se surpreendeu com tanta gente do Bairro Santa Inês, onde Dona Madalena morava, lamentando a morte dela. “A gente é que tinha que consolar as pessoas”, diz. Dona Madalena gostava de dar conselhos aos vizinhos. “Minha irmã diz que tudo o que ela fez nos últimos meses foi para deixar saudades”, conta. 

Anair estava em São Gabriel quando a mãe contraiu a Covid-19. Ela acompanhou todo o processo a distância. A família acredita que dona Madalena contraiu o vírus com a movimentação da residência, pois não estava saindo de casa. Quem sacava a aposentadoria dela era a filha. 

Inicialmente, os parentes acharam que era gripe e usaram os chás caseiros. Mas ela não melhorou. As filhas levaram Dona Madalena no posto de saúde e ela passou a tomar antialérgico, mas não resolveu. Ela continuou piorando, com tosse, dor na garganta, até ficar com a voz bem fraca. As filhas decidiram levá-la ao hospital. Dona Madalena não queria ir, dizia que ia morrer lá sozinha. Mas suas meninas não sabiam mais o que fazer. Ela ficou um dia internada e acabou falecendo. 

Quando a mãe piorou, Anair embarcou em São Gabriel com destino a Santa Isabel. Mas não chegou a tempo da despedida, desembarcando só no dia seguinte. 

Ficou lá durante dois meses, junto com as irmãs. “O que mais dói é saber que ela foi sepultada dentro daqueles sacos, com as pessoas tendo medo de contaminação. Não fazer funeral como é o costume das famílias. Por outro lado, o que nos dá alívio é que ela não foi levada para Manaus. Ficou em Santa Isabel. Minhas irmãs acompanharam o sepultamento. Sabemos onde ela está”, diz. Após um mês da morte, as filhas conseguiram cumprir o ritual de acender velas no túmulo da mãe. 

Dona Madalena falava as línguas indígenas Tukano e Nheengatu, mas não incentivava as filhas a aprenderem. “Ela não era muito de passar os saberes os indígenas. O papai não queria que ela ensinasse a língua indígena para nós. Mas eu era curiosa e gravava algumas coisas, ia perguntando e fui aprendendo o Nheengatu. Eu conversava com ela nas férias da escola. Quando a gente voltava para a escola ela dizia para parar de falar porque padres e freiras não gostavam.” Por muitos anos, o uso das línguas indígenas dos povos do Rio Negro foi proibido pelas missões salesianas. 

Mas ela repassou à família os ensinamentos sobre como usar as plantas medicinais.  “A casca da carapanaúba, por exemplo, ela pegava da árvore na mata. Até agora, contra a Covid-19, a gente usou”, diz Anair.

Dona Madalena era muito religiosa. Ultimamente não frequentava a igreja, mas rezava o terço todos os dias. E pedia para as filhas rezarem também, manterem-se sempre unidas. Na casa dela, no Bairro Santa Inês, está seu oratório, do jeito que ela deixou:  a Santa Imaculada Conceição, de sua devoção, São José, Nossa Senhora Aparecida, os Arcanjos, Nossa Senhora das Graças. E agora o cantinho recebeu um enfeite novo: Anair e sua sobrinha finalizaram o tapete de retalhos que dona Madalena não conseguiu terminar. Tudo está arrumado, como ela gostava.

Ana Amélia Handam • ISA