Cabo Jonas guardava histórias do tempo da borracha
Relatos de quando ainda se transportava a borracha pelo Rio Negro, em barcos sem motor, vêm à lembrança de Manoel Silva de Souza, enquanto ele conta sobre a perda do pai, Jonas Teles de Souza, de 88 anos, da etnia Baré, uma das vítimas da Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira (AM). Jonas Teles não chegou a trabalhar nos seringais, mas transportou muita borracha junto com seu sogro, ainda no Ciclo da Borracha.
“Isso era no tempo que subiam esse rio, os barcos tinham dois metros de largura na beirada. Nessas corredeiras, um monte de gente ia para essa beirada, pegavam nas árvores, um monte de gente ia puxando para o barco subir. Era assim que subia o rio, em barco sem motor. Era comprando borracha, trabalhando com seringa, na época da borracha”, relembra Manoel de Souza, que é motorista.
Ele conta que era pequeno e ainda chegou a ver perto de casa algum comprador de borracha, que era produzida principalmente no Alto Rio Negro, mais para perto de Cucuí.
O tempo da borracha passou. Jonas Teles entrou para a Polícia Militar (PM), ficou conhecido em São Gabriel da Cachoeira como Cabo Jonas. Mas não esquecia as histórias de antigas, do tempo da borracha. “Ele contava das coisas de antigamente, das dificuldades. Hoje tem essas facilidades todas e a gente ainda reclama”, conta Manoel.
Mas o que Jonas gostava mesmo era de ficar na comunidade do Balaio, também em São Gabriel da Cachoeira, onde vivia a família de sua mulher, Maria Neli, de 58 anos, da etnia Baré. Gostava de pescar, caçar. Não utilizava armadilha para peixe, porque na época dele era fartura, então pescava na linha, no caniço. Caçava de tudo: paca, cutia, tatu, mutum, jacu, veado, porco. Também trabalhava na roça. Toda folga que tinha, ia para o Balaio. Os filhos ficavam na cidade na época de aulas e, nas férias e recessos, também seguiam para a comunidade.
Manoel acredita que seu pai pegou a Covid-19 justamente na comunidade do Balaio, antes mesmo de o primeiro caso ser confirmado na cidade, o que aconteceu em 26 de abril. “Primeiro a gente achava que ele não tinha pegado a Covid lá, porque a comunidade estava fechada. Mas depois soubemos que já tinha gente lá com a Covid antes que os casos fossem confirmados na cidade”, diz.
Jonas Teles morava em São Gabriel, mas tinha casa no Balaio. Estava na comunidade em abril, quando passou muito mal, sentindo falta de ar, tonteira e canseira. Ele foi socorrido pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (Dsei-ARN) e trazido de helicóptero até a Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai) de São Gabriel. Lá ele melhorou e foi levado para casa. “Minha mãe tentou cuidar de todo jeito, dava chá”, conta. Mas não havia sido diagnosticado com a Covid-19.
Ele acabou piorando e foi internado no Hospital de Guarnição do Exército de São Gabriel da Cachoeira (HGu). Houve agravamento do quadro, sendo necessária transferência para Manaus. Seu neto Mardje, filho de Manoel, foi de acompanhante. São Gabriel da Cachoeira conta apenas com o HGu, unidade hospitalar do Estado que é gerida pelo Exército. Em caso de necessidade, é realizada a remoção para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) na capital.
Ele apresentava os sintomas da doença, mas os exames realizados em São Gabriel não confirmaram a contaminação pelo novo coronavírus, o que ocorreu quando ele repetiu os testes na capital. Segundo Manoel, seu pai apresentou comprometimento renal e não suportou a hemodiálise. Faleceu em 7 de junho. Foi realizado um velório rápido, com a presença de poucos familiares, incluindo alguns filhos dele que moram na capital. Manoel estava em São Gabriel e não despediu do pai, mas pretende visitar o túmulo assim que possível.
Para Manoel, a Covid-19 é uma coisa assustadora. “O pessoal não tá ligando muito. Quando vê a situação de perto é que percebe a gravidade”, diz. Além do pai, ele perdeu ao menos oito amigos e conhecidos. Manoel, a esposa e os três filhos tiveram a doença, mas sem gravidade. “Ainda não sinto o gosto direito da comida”, conta.
Jonas Teles nasceu em Manaus, mas era como se fosse nascido em São Gabriel. “Nasceu lá e veio para cá”, conta Manoel. Teve 13 filhos, sendo os três primeiros de relacionamento que teve antes de conhecer dona Neli. Passou a vida na Região do Alto Rio Negro. Ficava bravo quando os filhos eram crianças e iam nadar no rio, arriscando-se nas corredeiras. Para Manoel e seus irmãos, o dia de aniversário perdeu um pouco a graça: Jonas não esquecia a data e, mesmo quando o dinheiro estava curto, reunia os familiares e amigos mais chegados para festejar.
Manoel relata ainda que seu pai tinha perdido a visão há cerca de 25 anos, após complicação de cirurgia de catarata. Foi perdendo a capacidade de enxergar aos poucos. “Atrapalhou o lazer dele. Mas antes ele me levava sempre para pescar, para ver ele pescando. Então ficou diferente. Era eu que levava ele. Dava a linha na mão dele, iscava o anzol dele e jogava. Para ele matar a vontade dele. A gente sempre deixou a casa adaptada para ele, nunca modificou nada. Do mesmo jeitinho de quando ele perdeu a visão, ficou a casa. O lugar do fogão, geladeira. Tudo o mesmo lugar, mesa, sofá. Já era acostumado de ficar em casa daquela forma. As ferramentas dele, martelo, serrote, ficava sempre no mesmo lugar”, relata o filho.
Ana Amélia Hamdan • ISA