Dona Elza, da etnia Tukano, perdeu o irmão e o sobrinho no intervalo de oito dias

O mês de maio de 2020 foi marcado por profundas tristezas para Elza Tenório Vieira, de 63 anos, indígena da etnia Tukano, moradora de São Gabriel da Cachoeira (AM). No prazo de apenas oito dias – de 3 a 11 de maio –, ela perdeu o sobrinho Manoel Alexandro Paiva Vieira, de 49 anos, e o irmão João Tenório Vieira, de 65, vítimas da Covid-19. Nas lembranças de dona Elza misturam-se afeto, conflitos, cuidados, tristeza, histórias. Sua família é formada pelos últimos indígenas da etnia Tukano remanescentes da tribo Verão, no Rio Papuri. Com a morte de João Tenório, que era benzedor, o grupo perde seu último conhecedor tradicional, o guardião dos saberes. Ao rememorar os últimos dias dos parentes, ela interrompe a fala e chora, emocionada. Consola-se dizendo que participou do enterro dos dois, mesmo em tempos de pandemia. “Disse que não adiantava me isolarem, pois já estava contaminada”, relembra.

Filho de dona Elza, o advogado Ednaldo Tenório Vieira conta que parte dos saberes guardados por João Tenório perderam-se com a sua morte. “Era o último kumu (conhecedor) nosso. Não terminou de passar para mim o conhecimento”, diz. “Temos nossa língua, costumes e forma de viver na floresta e rios. Os remédios naturais, os rituais, o banco tukano, as cestarias. Acabei herdando muito pouco do meu tio sobre nossos costumes”, lamenta.

Mas a história da família está resguardada. “Minha mãe, eu e minha irmã, que teve paralisia infantil, somos os últimos remanescentes da tribo Verão, povo Yepamahsã, originários do Turí Igarapé, rio Paruri, fixados na comunidade Santa Luzia, mesmo rio, desde final de 1800”, relata. O povo Tukano é também chamado de Yepamahsã.

Dona Elza é a caçula de 10 irmãos e, agora, a única viva. Dos seus sobrinhos, muitos já morreram. Outros foram para a Colômbia, incorporando os valores locais.  A única filha dela teve paralisia infantil é cadeirante e não pode ter filhos. Ednaldo tem um filho, de 4 anos. “Meu filho apesar da pouca idade, sabe do peso de manter nossa linhagem. Sabe da nossa sociedade patriarcal, a necessidade de aprender a língua, os valores e a importância de repassar para nossos herdeiros”, diz.

Segundo Ednaldo, a história da família está ligada ao processo da colonização: o sobrenome Vieira foi dado em homenagem ao Padre Antônio Vieira, após a Lei de Pombal, que faz a referência ao Marquês de Pombal. Tal lei, chamada Diretório dos Índios, foi publicada em 1757 e trazia várias regras para aldeamentos indígenas, incluindo a adoção de nomes e sobrenomes portugueses pelos povos tradicionais. “Todos os indígenas falantes do tukano com sobrenome Vieira tem um ancestral em comum na era pombalina”, informa o advogado.

Ele e o tio João Tenório tinham o objetivo de dar início em 2021 a um projeto para registro da cultura dos indígenas Tukano da tribo Verão. Com o luto, o plano foi adiado. Em 2020, eles já tinham firmado outra parceria, mas na política: Ednaldo foi candidato a prefeito de São Gabriel, enquanto o tio saiu para vereador. Com o falecimento, dona Elza assumiu a candidatura, mas ela e o filho não venceram o pleito.

Dona Elza e João Tenório nasceram na comunidade Santa Luzia e são filhos de Laureano Vieira, Tukano, e de Mariquinha Tenório, Tuyuka. Ela conta que o pai nasceu e criou-se praticamente no mato, tinha medo dos brancos e fugia ao ouvir barulho de motor. “Tinha medo que pegassem e levassem para ser escravo”, diz. Mas, com a presença dos missionários, isso foi mudando e seu Laureano passou a usar calções. 

Ela foi interna no colégio católico em Iauaretê, mas João Tenório aprendeu a ler e a escrever na escolinha da própria irmã. Ele tinha os pés virados, sendo que a deficiência não impediu que ele fosse trabalhador, ajudasse na comunidade, auxiliasse o pai a fazer casa, a pescar. “Minha mãe não deixava ele ser interno. Quando eu entendi, eu falei: ‘mãe, deixa ele estudar’. Ela disse que não queria ninguém maltratando o filho. Era muita discriminação naquela época”, explica.

Os dois irmãos vieram juntos para São Gabriel quando o pai ficou doente, em 1981. A mãe ficou na comunidade, mas antes da morte do marido, também veio para a cidade, onde a família permaneceu. João não casou e acabou sendo o principal apoio de dona Elza.  “Foi pai e mãe dos meus dois filhos enquanto eu trabalhava”, diz ela, que além de agricultora é aposentada como técnica na área de saúde.  

A indígena não esconde os conflitos e conta que João Tenório e Manoel bebiam muito, o que gerava problemas.  “O que estragou mais foi a bebida, não ouvia conselho e por causa disso eu acabava discutindo com ele. João dizia que eu era brava.  Mesmo se eu ralhasse e dissesse que ele era ruim, daí a pouco dizia: tem comida, olha, tem isso.”  Sobre o sobrinho Manoel, ela conta que o considerava um irmão de criação, pois sua mãe cuidou dele desde que tinha 3 anos.

No início da pandemia, Dona Elza, sua filha, João Tenório e Manoel estavam morando na mesma casa, no Centro de São Gabriel, e todos pegaram a Covid-19. Foram dias dramáticos, com a indígena tendo que cuidar dos parentes mesmo estando doente. João Tenório quis proteger a irmã com benzimento. “Eu falei: pra que, se é pra morrer, deixa morrer. Mas ele disse: ‘Não você tem filho, tem filha, eles vão precisar muito de você, pelo menos você tem que viver. Eu não”, conta dona Elza, emocionada. Ela e a filha recuperaram-se em casa, sendo que dona Elza chegou a fazer o teste da Covid-19, que deu positivo.   

Ela vinha se desdobrando para cuidar do sobrinho desde dezembro de 2019, quando ele sofreu uma queda de 8 m do pé de açaí no sítio da família e quebrou os dois fêmures. Chegou a ser operado em Manaus, mas não recuperou os movimentos. De volta a São Gabriel e bastante debilitado, ele foi internado em abril HGuSGC para troca de sonda. A movimentação para o tratamento de Manoel provavelmente foi a causa da contaminação da família. 

Já em casa, ele começou a ter sintomas como febre, cansaço, tosse, dor de cabeça. “Dava remédio para febre, mas não sabia que era Covid”, diz. Em 3 de maio, ele não resistiu e morreu em casa. Dona Elza chamou a ambulância e ele chegou a ser levado ao hospital. “Só chegaram lá, levaram numa sala, o médico me chamou e disse: ‘A senhora fez tudo que pode.’ Eles tinham acompanhado como eu estava cuidando dele”, disse. 

O corpo de Manoel foi levado para a casa da família, sendo que participaram do velório somente dona Elza e uma prima. Mas, no final da tarde, uma equipe da saúde foi até o local e informou que seria necessário levar o caixão, pois havia suspeita de que ele tinha sido vítima da Covid-19. “Não podia velar, mas eu acompanhei o enterro. Vi que enterraram direitinho”, disse.  

Nesse período, João Tenório não apresentou melhora. Seu quadro foi piorando: não conseguia dormir, tinha muita febre, passava álcool, tomava paracetamol e remédios caseiros. Chegou a sonhar com a sua própria morte. “Hoje chegou um senhor, um espírito, ele me levou só que nós trocamos roupa, roupa azul marinho bonita. Disse que ia me mostrar o mar, a natureza. Nós fomos”, contou à irmã. 

Ele foi internado no HGuSGC em 7 de maio.  Levou junto as muletas antigas de sua mãe para ampará-lo. Sem poder acompanhar o irmão, dona Elza pediu que ele ao menos telefonasse.   “Eu já não tinha forças, andava segurando nas paredes. Eu não vi ele porque eu também estava arriada, eu e minha filhazinha. Não tinha como eu acompanhar. Isso me dói muito”, diz, chorando.  

Eles conversaram pelo telefone no dia 8 e João Tenório queixou-se que estava com fome e sede. Seu sobrinho chegou a levar comida e bebida para ele, mas não pôde entrar no hospital.  

No Dia das Mães, 10 de maio, Dona Elza fez preces especiais pela melhora do irmão e passou a data ao lado da filha. Mas, no dia seguinte pela manhã, a assistente social do hospital pediu que ela fosse ao HGu.  Ao chegar no local, o médico deu a notícia da morte de João Tenório. “O médico disse: não posso te abraçar. Fizemos de tudo, mas seu irmão não aguentou”, relembra. Ela foi informada que João Tenório teve pneumonia, Covid-19, além de problemas no estômago e fígado. 

Dessa vez, não houve velório. “Fui com ele do hospital para o cemitério.  E de novo falei: não adianta me isolarem, já estou contaminada. No hospital liguei para o meu filho. Ele chegou para o sepultamento”, conta. As muletas da mãe que João Tenório havia levado para o hospital, para ampará-lo, dona Elza colocou em frente ao túmulo do irmão.