A casa de seu Jerônimo era pequena, mas cabia toda a família numerosa
A residência de seu Jerônimo Chaves Gomes, de 78 anos, da etnia Piratapuya, e de sua esposa Olívia Braga Gomes, de 85 anos, também Piratapuya, na Rua Dois, Bairro Areal, em São Gabriel da Cachoeira (AM), sempre foi referência para toda a família. Ele ainda era jovem, quando pegou os oito filhos, alguns bem pequenos, e saiu de Aracu-Ponta, no Rio Uaupés, no distrito de Iauaretê, num barco a remo. Demorou cerca de 30 dias até chegar na cidade. Queria mudar de vida. Primeiro a família precisou morar em um barracão destinado a indígenas que estavam chegando na cidade. Depois seu Jerônimo conseguiu na prefeitura uma casinha no Bairro Dabaru.
“Sempre foi uma casa de referência para a família todinha. A casinha era bem pequenininha, que a prefeitura deu. Quando ele viu que a família estava crescendo, ele deu uma puxada para a lateral. E todo mundo chegava aí”, relembra diz Cledson Gomes Moreira, de 35 anos, da etnia Tariano, neto mais velho de seu Jerônimo e dona Olívia. E olha que a família é grande: 8 filhos, 28 netos, 8 bisnetos.
Seu Jerônimo morreu de Covid-19 no domingo 24 de maio, Dia de Nossa Senhora Auxiliadora. “Minha família é muito católica e a gente fala que Nossa Senhora levou meu avô, porque ele foi em paz. Mesmo com falta de ar, estava com o terço na mão, rezando o rosário”, diz. Ele faleceu em casa, mas não no Bairro Dabaru, pois estava morando com a filha Salete Gomes, no Bairro Areal. Quando morreu, estava deitado na rede, perto da família.
Dias antes, uma das filhas de seu Jerônimo chegou a levá-lo ao Hospital de Guarnição de São Gabriel da Cachoeira (HGu). Na triagem foi informada que naquele dia só estavam sendo recebidos os pacientes graves e já com confirmação da Covid-19, mas seu Jerônimo não tinha feito o teste. Ela voltou com o pai para casa.
“A gente não queria levar ele no centro de saúde. Tinha medo de saber que era essa doença. Quando a doença começou foi um desespero para a gente. Uma doença nova, a gente não tem imunidade contra isso, ninguém sabia, nem os brancos sabiam como era para fazer tratamento. A única coisa que lá em casa sabia era esperar para saber como o nosso sistema imunológico ia reagir quando a gente pegasse”, diz. A família acredita que o idoso pegou a Covid-19 com a movimentação dos parentes na casa.
Após a morte, foi constatada a Covid-19. Todos da família fizeram testes, que deram resultado positivo. Inclusive dona Olívia teve a doença, mas foi assintomática. Os médicos informaram à família que seu Jerônimo estava com câncer, o que pode ter agravado o problema. Ele, que gostava de beber, já tinha deixado a bebida, mas continuava fumando.
Mesmo com as restrições sanitárias para evitar contágio, a família fez o velório e, no outro dia, acompanhou o sepultamento. “Foi só gente da família. Naquela época só podia circular até 15h”, diz Cledson, referindo-se ao período de restrição no deslocamento, determinado pela prefeitura como medida para reduzir o ritmo de contaminação pelo novo coronavírus.
Quando começaram os alertas da Covid-19, a família temeu mais por dona Olívia, que estava adoentada. E seu Jerônimo não deixou de cuidar da esposa mesmo quando já estava com falta de ar. “Até quando o meu avô estava doente, com falta de ar, minha avó dizia: ‘Velho, a minha hora de tomar remédio já passou. Tu nem se lembrou’. Então meu avô doente pegava remedinho, chá e dava para ela. Mesmo doente, cuidou dela”, diz o neto.
Cledson fica feliz em contar que tem muito em comum com o avô. “Eu me espelhei nele”, diz. Herdou do avô o jeito de sempre seguir em frente, sem ficar reclamando. “Ele era vigia à noite e trabalhava na roça durante o dia. Também era liderança na Igreja de São Sebastião. Mesmo velho, continuava ativo: carregava água, ia e voltada do Centro a pé, comprava farinha”, relata.
Da mesma forma, Cledson exerce várias atividades: é vigia concursado da Prefeitura de São Gabriel e atua em prédios públicos. De tarde trabalha com artesanato, sendo vice-coordenador da Associação dos Artesãos Indígenas de São Gabriel da Cachoeira (Assai). Aos sábados, vai para a Igreja São José – Paróquia Nossa Senhora Aparecida, onde é coordenador e exerce diversas atividades. É formado em tecnologia em logística pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
“Meu avô era exemplo de persistência, não era de brigar, bater boca, era bem alegre, não existia tempo ruim. Se tivesse de ir daqui até Camanaus a pé, ele ia”, diz. E ainda dominava saberes atribuídos às mulheres, como fazer beiju, farinha e caxiri. Seu Jerônimo era bom pescador. E o que mais gostava de comer era peixe e açaí.
E, na hora de trabalhar a roça, dividia bem o que plantar, garantindo alimentação saudável para os netos. Seu Jerônimo também tinha roça no Parauari, hoje chamado de Ramal 0. Metade do terreno tinha mandioca, no restante, a plantação era diversificada: banana, cucura, cana, cará, pupunha. A produção garantia até um dinheirinho para os netos. Cledson recorda-se que, junto com seus primos, colocava banana e cucura na bacia para vender, garantindo trocados para o pão do café da manhã: “nunca fomos ricos, mas também nunca passamos dificuldade. Sempre houve fartura em casa”.
A prática tradicional do benzimento também estava entre as habilidades de seu Jerônimo. Mas esse conhecimento, ninguém da família levará adiante. “Depois do parto, a comida da mãe tem que ser benzida, dor de cabeça, febre e tontura ele benzia. Nenhum de nós teve coragem de ir lá com ele, dizer ou gravar algum benzimento. A gente perdeu isso. Agora fica difícil para a gente”, lamenta o neto mais velho de seu Jerônimo.
Ana Amélia Handam • ISA