A migração de Komadeeroa Isaías Fontes
Perdemos nosso querido Isaías. E não há quem dispense o adjetivo “querido”. A gentileza no trato e a serenidade no olhar sempre o acompanharam. Com sorriso característico – tímido, mas abundante – nunca perdia a oportunidade de respeitosamente provocar risos nos que lhe cercavam.
Falante das línguas Baniwa e Kubeu, além do português, Isaías era nascido na comunidade de Ucuqui Cachoeira, localizada no igarapé Uaranã, na cabeceira do Rio Ayari. Pertencia ao mais alto clã da fratria Hohoodeni, que significa filho do pássaro inambuzinho. Um líder nato, que dedicou sua vida à luta pelos direitos dos povos indígenas do Rio Negro.
Carregava a serenidade e o espírito de liderança em seu nome de benzimento, Komadeeroa, que, segundo os parentes Baniwa, em uma tentativa de tradução para o português, se aproxima de “líder guerreiro, manso como pato”.
Ainda jovem, nos anos 1980, saiu de sua comunidade para seguir os estudos na escola salesiana de São Gabriel e depois na Escola Agrícola em Manaus. Ao concluí-los, retornou ao território Baniwa e se tornou o sócio fundador da Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI), em 1992, e fundador da primeira organização indígena do povo Baniwa no Rio Ayari em 1995, a Associação das Comunidades Indígenas do Rio Ayari (Acira). À frente dessa associação, foi responsável por contribuir para a representatividade dos povos Baniwa e Koripako no incipiente movimento indígena do Rio Negro.
No início dos anos 2000, após concluir seu mandato pela Acira e enfrentar a perda dolorosa de um irmão, mudou-se definitivamente para São Gabriel da Cachoeira. Porém, jamais abandonou suas origens e tampouco o movimento indígena.
Em São Gabriel da Cachoeira, passou a atuar como administrador do departamento financeiro da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), onde mais tarde se tornou diretor da coordenadoria representativa dos povos Baniwa e Koripako (CABC na época). Em 2018 ajudou na reestruturação da coordenadoria, que passou a ser reconhecida como Organização dos Povos Baniwa e Koripako – Nadzoeri.
Ao longo da sua trajetória no movimento indígena, Isaías defendeu assiduamente a educação escolar indígena, assegurando a implantação de políticas públicas para a formação de professores Baniwa e a criação da rede de escolas Baniwa e Koripako. Foi ávido na luta pela proteção territorial contra as insistentes invasões garimpeiras e empresas de exploração de minérios. Batalhou pela ampliação do sistema de saúde indígena nos territórios e assumiu, mais uma vez, o seu papel de liderança no enfrentamento da Covid-19 no Alto Rio Negro junto aos seus colegas da Foirn e parceiros interinstitucionais.
No final de 2020, Isaías havia sido reconduzido para o seu terceiro mandato na diretoria da Foirn, ocupando o principal posto de representante dos povos Baniwa e Koripako.
Isaías manifestou os primeiros sintomas da Covid-19 na mesma semana em que completou seu 53º aniversário. Após oito dias em cuidados domiciliares, deu continuidade ao tratamento na Unidade de Atendimento Primário Indígena (UAPI) e no Hospital da Guarnição em São Gabriel da Cachoeira (HGu), enquanto aguardava remoção para capital. Em 27 de janeiro, Isaías foi levado ao Hospital Delfina em Manaus mas, infelizmente, seus pulmões já estavam demasiadamente comprometidos pela doença. Isaías não resistiu à longa fila de espera do sistema de saúde colapsado do Estado do Amazonas.
Komadeeroa alçou voo de retorno junto aos ancestrais na noite de 1º de fevereiro de 2021. Deixou a esposa, dois filhos, um neto e um enorme legado para o movimento indígena do Rio Negro e para a reconstrução do bem viver Baniwa e Koripako.
Parentes e amigos da liderança foram até o portão do cemitério municipal de São Gabriel da Cachoeira, onde o corpo foi sepultado, para prestar as últimas homenagens.
Alegre, sereno e conciliador. Assim nos recordaremos de nokitsinda Komadeeroa.
Natália Pimenta • ISA