Comunidade Yanomami chora morte de criança

O jovem casal Yanomami Valdemar Pereira Lins, de 29 anos, e Daniela Lopes Assis, de 26 anos, vem contando com a ajuda de pajés para proteção contra os espíritos da tristeza. Uma das três filhas do casal, uma ihiru – como se escreve criança em Yanomami – de apenas 3 anos morreu vítima da Covid-19 em março de 2021. “Quando ela foi a óbito até eu não acreditei: uma criança que estava correndo e saudável naquela semana morrer no final de semana. Não dá para acreditar isso”, lamenta o pai. A ihiru não tinha outras doenças que pudessem agravar seu quadro. 

Valdemar é uma liderança jovem Yanomami, professor e articulador do turismo sustentável no Pico da Neblina, localizado no território de seu povo. Vem buscando nas obrigações como líder a força para se manter firme e levar seus projetos adiante. Mas, para ele, a Covid-19 roubou um pedaço do futuro da família, o sonho de criar suas meninas juntas. 

A ihiru de Valdemar  – o nome e a imagem da criança não serão divulgados em respeito aos costumes da etnia –  era criada livremente em Maturacá, aldeia Yanomami no município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, divertindo-se com as amigas, amigos, primos e primas, além das irmãs Vitória, de 6 anos, e Suelene, de 1 ano. Gostava de dormir com a avó na rede e de brincar com o pai na comunidade. Mas acabou contraindo o novo coronavírus na aldeia.

No dia 21 de março, Valdemar estava em São Gabriel da Cachoeira para cumprir agenda na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) quando foi informado pela própria esposa que sua filha não estava bem e seria transferida de Maturacá para o Hospital de Guarnição (HGu).  “Quando saí de lá, ela já estava com sintomas de resfriado. E logo quando cheguei na cidade falaram que ela tinha piorado”, diz. 

A criança foi resgatada em aeronave do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei Yanomami) e internada em 21 de março. No dia seguinte, faleceu. Os pais acompanharam de perto o tratamento da criança. “Essa doença é muito forte. Foi saturando pouco, como dizem (saturação é o nível da oxigenação do sangue). Eu falei: poxa, tomara que dê tudo certo, salve a minha filha. Os médicos fizeram tudo, mas não conseguiram”, relembra Valdemar, segurando a emoção.  

“No momento aqui, até agora não estou conformado, por dentro dói, mas fico sem demonstrar, parece que está tudo bem porque sou liderança jovem, articulador e eu tenho esse compromisso e responsabilidade: não pode estar demonstrando muito o sentimento, dor que a gente tem”, diz. 

No mesmo dia do falecimento, a menina foi levada de volta a Maturacá, onde foi enterrada. “Eu consegui levá-la de volta a Maturacá. É importante ter nossos entes queridos, chorar por eles. É bom porque todo mundo tem que chorar pelos nossos familiares, principalmente as nossas famílias. Tem que chorar quando perde uma pessoa da família”, explica. 

A situação das crianças Yanomami frente à pandemia da Covid-19 é de bastante vulnerabilidade. Em 10 de agosto, matéria publicada pelo Instituto Socioambiental (ISA) informou sobre a transferência de cinco crianças do Maiá – também no território indígena do Amazonas – até o HGu: quatro testaram positivo para Covid-19 e a quinta foi tratada como suspeita. Este ano, o Conselho Distrital de Saúde Indígena Sanitários Yanomami e Ye´kuana (Condisi-YY), órgão vinculado ao Dsei Yanomami, divulgou que ao menos 10 crianças da etnia, com idade entre 1 e 5 anos, tinha morrido com suspeita de Covid-19 em duas comunidades em Roraima: Kataroa e Waphuta. Segundo a Agência Brasil, o caso é apurado pelo Ministério da Saúde.

Valdemar relata que, no início da pandemia, em 2020, houve um grande temor da doença entre os Yanomami.  “Em Maturacá no início no ano passado, quando chegaram as notícias de através do Dsei, enfermeiros e médicos falaram da doença muito perigosa. A comunidade ficou desesperada, achamos que íamos morrer todos, falavam que os indígenas tínhamos a imunidade baixa”, relata. 

Em seguida, os indígenas começaram a fazer uso dos chás tradicionais, principalmente com carapanaúba, saracura, mel, mangarataia e limão. Entre o final do ano e início de 2021, começou a segunda onda, que vitimou a filha de Valdemar. Agora a situação está mais controlada: a maior parte da população de Maturacá acima de 18 anos já está vacinada. A recomendação é de manutenção dos cuidados devido ao alerta sobre uma terceira onda da pandemia.

Os pajés continuam fazendo suas proteções. “Essa doença, segundo o tuxaua Carlos (liderança na comunidade) falou, veio para levar as pessoas, é uma doença que chegou com muita fome. Porque as doenças pro olhar de um pajé são espirituais também. Ele estava se preocupando, fazendo toda a proteção de manhã e a tarde. Por causa disso, a doença não foi pior”, explica.   

Pelo costume Yanomami, após a morte, todos os pertences da pessoa devem ser queimados. É um desrespeito exibir a imagem ou repetir o nome do ente querido falecido. Mas em seu celular, Valdemar ainda carrega, bem protegida e guardada, a foto de sua ihiru já no leito do hospital, lutando contra a doença.