Higino Tuyuka: mestre e aprendiz tradutor de mundos
Poani Higino Pimentel Tenório faleceu na noite de 18 de junho, em Manaus, depois de ter contraído coronavírus na comunidade onde residia, Curica, na foz do Curicuriari, no Rio Negro, abaixo da cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM). Depois de alguns dias com os primeiros sintomas na comunidade, sua família pediu sua remoção para a cidade. Esteve internado por um mês, metade do tempo no Hospital de Guarnição em São Gabriel, onde esteve em situação delicada até poder ser transferido para Manaus.
Segundo nota do governo do Amazonas, “ele ficou internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), na ala indígena do hospital (Nilton Lins), onde recebeu todo o tratamento padrão, que é realizado em casos de Covid-19, com as especificidades direcionadas aos pacientes indígenas. Higino, que não apresentava registros de comorbidades, teve o quadro agravado por uma insuficiência respiratória aguda, que evoluiu para pneumonia viral aguda, com hipoxemia (baixo nível de oxigênio no sangue)”.
Higino foi o principal líder dos Tuyuka na virada do milênio e por quase vinte anos seguiu contribuindo decisivamente para a retomada de sua língua e da própria autoestima de seu povo, que estavam sendo sufocadas até meados da década de 1990.
Ele também foi bayá, construtor de canoa, artesão, químico (no Vaupés colombiano), professor, tradutor trilíngue e intercultural, gestor de organização indígena, pesquisador, especializado em petróglifos, escritor, produtor cultural…
Esposo de Amélia, oito filhos, quatro meninas (Dia Dulce, Sumé Ilza, Yosokamo Rosa, Kamo Pedrina, a segunda infelizmente já falecida) e quatro meninos (Utarõ Antônio, os gêmeos Renan Ñidupu e Renato Bua, e Poani), filho de Arnaldo e Luiza, irmão menor de Guilherme e Cecília.
Higino sofreu muito com os missionários salesianos, não só pelo processo traumático de escolarização no internato, mas também porque eles obrigaram a separação de seus pais, e sua mãe teve de abandoná-los ainda crianças. Depois dos anos de escola, foi professor no Rio Negro, mas logo depois foi para o Vaupés colombiano. Depois de muitos anos e trabalhos lá, voltou e casou-se com Amélia Barreto, da comunidade tukano de São Domingos.
Envolveu-se com o garimpo do Traíra e, passado o período mais intenso do ouro, estabeleceu-se em sua comunidade, ainda na casa de seu irmão Guilherme, que nesse tempo andava fora. Nos anos 1990 passou a dedicar-se efetivamente ao movimento indígena, com a criação da Cretiart, quando foi seu vice-presidente.
O grande projeto de sua vida, ouso dizer, foi o da Escola Tuyuka, referência em educação indígena e que muito avançou, tendo sido responsável por revigorar a língua e a cultura de seu povo.
Higino é descendente da linhagem dos Tuyuka Opaya, quinta geração de uma migração desse povo que ocupou o Alto Rio Tiquié, justamente onde depois seria traçada a fronteira entre Brasil e Colômbia, que dividiu suas malocas e comunidades entre os dois países. Higino foi herdeiro dos donos e construtores de grandes malocas, onde dançavam com seus adornos com penas coloridas de pássaros.
Seu nome de benzimento, Poani, está ligado à caixa de adornos, onde são guardados os ornamentos feitos de penas, plumas e pelos de animais usados nas danças cerimoniais – por isso, é considerado “filho das plumas da Cobra-Pedra”. Apesar de toda a pressão dos missionários ao longo de décadas, assim que puderam respirar de novo, voltaram a construir malocas em suas comunidades e a fazer suas festas. Reviveram, e ele teve um papel importante nessa animação.
Mestre e aprendiz, talvez o que mais marcou a vida de Higino foi sua curiosidade e avidez por conhecer e aprender, num incansável esforço por entender os diferentes mundos em que viveu e cruzá-los com traduções. Esse foi um dos motores do projeto tuyuka de fazer uma educação diferente. Não só entender, mas irromper neles ativamente, buscando respostas e transformações.
Para Lenilza Ramos, que concluiu em 2008 a primeira turma de ensino médio da Escola Tuyuka, “neste momento de lágrimas, sinto muito a perda do parente Higino, ao mesmo tempo agradeço muito ele pela batalha da educação indígena, revitalização da língua e da cultura tuyuka, ele lutou e viu o resultado que nós conseguimos – de falar e escrever a nossa língua, até no dia de hoje estamos vivendo com nossa língua. Mesmo com a perda do Higino, ninguém vai esquecer e perder a nossa fala, sempre vamos continuar lutando e lembrando tudo que ele tinha conseguido. Tenho certeza, vai fazer muita falta para todos os povos do Rio Negro, em nossos pensamentos ele sempre vai estar vivo, sempre nos ajudando.”
Jonas Barbosa, da etnia Yebamahsã, também ex-aluno, que estudou na segunda turma que se formou na Escola Tuyuka lembra que nasceu “numa comunidade indígena Tuyuka, do Sr. Higino Tenório. A luta dele sobre educação escolar indígena foi muito importante. Primeiro eu estava estudando no Colégio de Pari-Cachoeira, aí meus pais decidiram me levar de volta pra comunidade, na época a Escola Tuyuka estava nos primeiros anos de funcionamento. Voltei para lá e segui estudando, pra mim foi muito importante, mesmo eu sendo indígena não sabia a realidade, através dessa escola que o Higino criou me fez questionar e refletir, foi muito importante porque aprendi muitas coisas sobre a minha origem, dos Tuyuka e de outras etnias da região. Era uma liderança, um professor muito comprometido com a escola e com a comunidade em geral. Com ele aprendi que jamais podemos desistir, tem que lutar pra poder realizar o nosso sonho, foi uma pessoa que me inspirou de ser batalhador, e ir atrás do sonho”.
Para Marivelton Barroso, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), “Higino foi uma das pessoas que mais nos incentivou e deixou todo um legado na política de educação escolar indígena, no aspecto cultural, como conhecedor tradicional, grande articulador e motivador para as novas gerações. Sentimos uma dor muito grande nesse dia de hoje, mas sua história vai estar sempre presente com a gente, e vamos seguir nessa luta, que não foi só dele, mas de vários líderes que já se foram. Ele vai estar sempre em nossa memória.”
Texto de Aloisio Cabalzar • Coordenador-Adjunto Programa Rio Negro Instituto Socioambiental • ISA
Publicado originalmente no site do Instituto Socioambiental (ISA), em 20 de junho: https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-rio-negro/poani-um-tributo-ao-rio-negro
Poani Higino Pimentel Tenório faleceu na noite de 18 de junho, em Manaus, depois de ter contraído coronavírus na comunidade onde residia, Curica, na foz do Curicuriari, no Rio Negro, abaixo da cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM). Depois de alguns dias com os primeiros sintomas na comunidade, sua família pediu sua remoção para a cidade. Esteve internado por um mês, metade do tempo no Hospital de Guarnição em São Gabriel, onde esteve em situação delicada até poder ser transferido para Manaus.