Rio Negro perde seu Feliz: morre Feliciano Lana, que traduziu em arte as paisagens do Rio Negro
Feliciano Pimentel Lana faleceu em 12 maio de 2020, às 4h da madrugada, em São Francisco, comunidade situada no Alto Rio Negro, onde foi sepultado, no dia seguinte, na presença de familiares. Aos 83 anos, o artista plástico desana, de estilo inconfundível, deixa uma extensa produção que se espalhou por muitas publicações e acervos de instituições nacionais e internacionais, tornando-se uma marca do Rio Negro indígena. Ele era um artista expedito e versátil, expressando seus conhecimentos minuciosos das narrativas, da história e das paisagens do noroeste amazônico em seus desenhos e pinturas.
Feliciano nasceu na comunidade desana São João, no Médio Rio Tiquié, tendo recebido o nome de benzimento de Sibó, “filho do sol”. “Minha avó me carregava indo na roça”, contava ele, sobre quando ainda era bebê. “Eu lembro muito bem quando eu estava passando no caminho da roça, caía chuva. Aí eu percebia que ela estava me carregando no pescoço. Aí vinha pensamento da minha vida. Pouco a pouco e fiquei já menino. Ela morreu depois que entrei no colégio” (entrevista recente feita pelo antropólogo Thiago Oliveira).
Feliz percorreu a trajetória de sua geração: estudou no colégio de Pari-Cachoeira, quando esse ainda estava em obras e ele ajudou, como todos os alunos, em sua construção – nesses tempos os missionários católicos concentravam muito poder na região e adotavam práticas educativas rigorosas; depois que completou a sexta série, foi trabalhar na Colômbia, inclusive no caucho (seringa), como muitos outros parentes do Tiquié, onde permaneceu cinco anos; na volta casou-se com Joaquina Machado, tukano de Pari-Cachoeira.
Foi nesse tempo que começou a colaborar com o padre lituano Casimiro Béksta, recém-chegado à região e muito interessado nas narrativas e xamanismo indígenas. Em um dos primeiros trabalhos que Feliciano entregou-lhe, preocupado com a dificuldade de expressar certas ideias, resolveu desenhar alguns episódios descritos por seu sogro, velho conhecedor.
Assim nasceu sua arte, expressão das narrativas de seu povo e que, mesmo despretensiosamente, revela de forma singular o mundo desana. Esse trabalho de registro dos conhecimentos dos kumua (especialistas nos encantamentos rituais) a pedido do missionário acabou sendo também fonte de aprendizados para Feliciano.
Na década de 80, o garimpo de ouro na serra do Traíra – que pode ser alcançado por trilhas na floresta a partir de afluentes do Tiquié – e o assédio das empresas mineradoras, além da presença militar crescente na região, trouxeram grandes impactos e transtornos para as comunidades do Rio Tiquié. Muitos de seus moradores se viram trabalhando no garimpo ou produzindo farinha para abastecer aqueles que lá se encontravam. O ouro inicialmente farto atraiu muitos comerciantes, que lá chegavam através do agenciamento de regatões (os caixeiros viajantes fluviais), assim como de suas mercadorias.
A primeira vez que encontrei Feliciano, em 1993, ele ainda estava em São João. Eu trabalhava rio acima, com os Tuyuka, mas parei com ele para entregar-lhe um pagamento e pegar alguns desenhos a pedido de Berta Ribeiro. Ela tinha trabalhado nessa comunidade principalmente com Luis Lana e seu pai, tendo inclusive contribuído para a elaboração do livro de narrativas “Antes o Mundo Não Existia” (cuja primeira edição é de 1980 e, a mais recentes, de 2019).
Feliciano mudou-se para São Gabriel da Cachoeira em meados da década de 1990, e se instalou com sua família no alto da pedra da Fortaleza, sendo os únicos moradores. O local fica bem próximo das ruínas já irreconhecíveis do forte construído pelos portugueses mais de dois séculos antes, em 1763, e que foi estrategicamente posicionado junto a uma garganta em que o Rio Negro se estreita de forma única em todo o seu curso.
Justamente por isso, muito tempo antes, como contam as narrativas de origem, esse local foi escolhido pela Gente da Transformação para capturar e matar uma cobra-monstro chamada Diadoe – a cobra traíra, colocando aí um matapi gigante, que Feliciano ilustrou com diferentes nuances.
Ele não se cansou de pintar a paisagem vasta e incrível do Rio Negro e suas serras, que se abrem à vista do alto da fortaleza. Sabia o nome de casa montanha – Basebo, Wariró e suas filhas. Dona Joaquina, mais velha que ele, era também conhecedora e muito lhe ensinava.
O tempo passou, Joaquina faleceu, e Feliciano teve que deixar a fortaleza e mudar-se para o Areal, bairro que estava surgindo na periferia da cidade, local mais distante e bem menos agradável. Mas ele resistiu e seguiu pintando e curando, já que era muito procurado por ser também um benzedor reconhecido.
Calmo e generoso, muito aberto a novos desafios e para transmitir seus conhecimentos, produziu uma obra sensível, expressiva da cosmologia dos povos Tukano e quase onipresente nos trabalhos de antropólogos, historiadores e artistas que tratam do Rio Negro. Seus trabalhos estão em instituições diversas como o Museu de Arte de Belém, o Museu da Amazônia e o Museu Britânico, com o qual estava colaborando recentemente. Toca fazer um inventário de publicações que trazem seus desenhos e pinturas, que deve se aproximar de uma centena, no Brasil e fora, além de exposições e animações.
Feliciano não negava trabalho, abordou todos os temas: plantas da roça, árvores, peixes, artefatos e utensílios, cenas de trabalho, retratos de mulheres e homens em suas atividades, sentimentos e afecções, festas, rituais, elementos citados nos benzimentos. Mas sua predileção era ilustrar as narrativas mitológicas, quando expressava de forma criativa, às vezes cifrada mas ao mesmo tempo singela, conceitos e perspectivas centrais para esses povos.
Feliciano frequentava assiduamente e mantinha uma relação próxima de colaboração com o Instituto Socioambiental (ISA) em São Gabriel da Cachoeira, onde convivia com as pessoas da equipe e outros parceiros e pesquisadores que aí passam e se hospedam, além de contribuir com suas publicações e desenvolver algumas oficinas de desenho.
Com a anunciada chegada da pandemia ao Alto Rio Negro, ele contou sobre sua preocupação por já ser mais velho e vulnerável, e que iria seguir para o interior, onde tinha seus filhos. Como aconteceu em diversos casos em São Gabriel, que concentra serviços bancários e comércio, muitos demoraram a sair da cidade. Quando surgiram os primeiros casos, já de transmissão local, ficou evidente a gravidade da situação.
Apenas no Areal, Dabaru e Graciliano, bairro vizinhos onde ele vivia, até 12 de maio já havia 55 casos confirmados, com seis mortos. Ele saiu da cidade com sintomas de Covid-19, e não mais resistiu em São Francisco, conforme nos chegou a notícia, via radiofonia.
Em 12 de maio de 2020, o Rio Negro perdeu seu Feliz.
Texto de Aloisio Cabalzar • Coordenador-Adjunto Programa Rio Negro Instituto Socioambiental • ISA