Aos 81 anos, seu Casimiro estava forte e ainda tirava açaí, mas não resistiu à Covid-19

Quando o assunto da pandemia da Covid-19 começou a ganhar força em São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste do Amazonas, a preocupação de seu Casimiro Rodrigues Pena, da etnia Tukano, era com sua esposa, Amália Gonçaves, de 79, que andava adoentada há algum tempo. Mas a doença acabou levando foi seu Casimiro, que morreu em 14 de agosto, assustando a família. Apesar da idade, ele continuava forte e ativo: até subia no pé e tirava açaí.

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“Meu amigo, pai e tudo para mim”, diz a filha Gilda ao segurar a foto do pai

“Eu pensava que meu pai não ia morrer. Aí foi susto grande para mim. Fazia tudo normal. Ele era muito forte, difícil para adoecer. Meu pai gostava de andar para a roça, roçava como se fosse novo.  Não aquietava em casa, ia tomar banho no igarapé. O que ele quer fazer, ele fazia tudo. De repente chegou isso daí só para tirar mesmo a vida dele. Assim que foi”, conta a filha de seu Casimiro, Gilda Maria Gonçalves Pena, misturando o tempo presente e passado. 

Para ela, o pai continua ali pela roça, com seus afazeres. “O que ele fazia, tá tudo aqui. Na minha cabeça, na minha imaginação, ele tá comigo mesmo. Meu pai tá vivo para mim. Imaginando assim, às vezes choro. Meu marido fala: ‘ele não vai voltar nunca’. Por isso que eu choro. Se ele fosse voltar amanhã, outra semana, eu não ia chorar. Quando eu choro, minha mãe chora também”, relata Gilda, sentada no sofá de casa, no sítio do Ramal 4, em São Gabriel. 

Seu Casimiro morava nessa casa com a esposa, a filha Gilda, o genro e dois netos. Todos, inclusive dona Amália, pegaram a Covid-19, mas só ele apresentou a forma mais grave.

Gilda conta que perdeu não só um pai, mas um amigo que não a deixava sozinha. “Ele não me largava para eu ir sozinha para a roça. Sempre estava me acompanhando. Meu pai fazia roça, eu plantava. Não aquietava não. Meu amigo, pai e tudo para mim. Por isso que me dói mais porque é meu sempre amigo. Não me deixava eu sozinha. Às

vezes eu falava: ‘Pai, o senhor fica aí hoje’. ‘Não filha, só quando um dia fechar o meu olho, eu vou parar. Eu vou sempre contigo. Não consigo ficar em casa. O dia é comprido. Quando for para a roça, rapidinho passa o dia’”, diz, relembrando as palavras do pai.

Seu Casimiro era agricultor e contava ter nascido na Colômbia, mas vivia na comunidade de Bela Vista, na região do rio Tiquié, no lado brasileiro. São Gabriel fica na tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Venezuela. Há cerca de 20 anos mudou-se para a cidade e morou em período no Bairro Areal. Depois a família foi de vez para o sítio no Ramal 4. Ele teve 5 filhos, sendo que dois morreram, e 12 netos. 

Ele também era benzedor, cuidava das pessoas da família e de gente de fora. Mas não conseguiu repassar aos parentes esse conhecimento, que tradicionalmente é um legado deixado de pai para filho ou neto. Seu filho não mora perto dele, enquanto os netos próximos são muito jovens e não entendem bem a língua Tukano, falada por seu Casimiro e utilizada nos benzimentos. “A sabedoria do benzimento, porque sou mulher, não perguntei. Conhecimento da roça, eu vi tudo o que ele foi fazendo, fui aprendendo com ele no dia a dia”, conta a filha. 

Ela acompanhou o pai durante toda a doença. Inicialmente, eles acharam que era uma gripe forte. Depois, foi piorando, o que levantou a suspeita de Covid-19, dengue ou malária. 

O agricultor pegou o novo coronavírus após o auge das contaminações no município, que ocorreu em maio e junho. A morte dele foi a 50ª registrada no município de São Gabriel da Cachoeira, que até 30 de setembro registrava 4.292 casos e 56 óbitos pela doença.  

Ele costumava sair de casa para sacar a aposentadoria. Durante toda a pandemia, o saque de benefícios sociais colocou os indígenas em risco de contaminação pelo novo coronavírus. Mas a família acredita que ele pegou a Covid-19 ao se encontrar com outras pessoas no igarapé onde costumava tomar banho todos os dias, de manhã bem cedo. 

Os familiares fizeram chás, cuidaram de seu Casimiro. Uma sobrinha enfermeira colocou soro nele dois dias seguidos. Mas não adiantou. No domingo 9 de agosto, Dia dos Pais, seu Casimiro piorou. Gilda levou-o na Unidade Básica de Saúde do Bairro Areal. No local foi feito o teste da Covid-19, que deu positivo. O médico encaminhou para o Hospital de Guarnição do Exército (HGu). 

Seu Casimiro não queria ficar internado. “Ele falou comigo: ‘E aí, bora fugir, minha filha. Não quero ficar aqui não. Tô melhor. Estou internado aqui à toa’”, conta Gilda.  

Ela ficou com seu Casimiro quase o tempo todo. Na sexta-feira, o irmão de Gilda chegou da comunidade e ficou no hospital para Gilda ir em casa rapidamente. “Fui para casa rapidinho para fazer chá e lavar a roupa dele. Quando eu saí, não demorou nada e ele morreu. Quando eu cheguei, meu pai já estava morto. Eu fiquei muito desesperada. Me doeu muito naquela hora. Da minha parte eu fiz tudo”, diz. 

Seu Casimiro foi enterrado no dia seguinte, mas Gilda não teve forças para acompanhar o sepultamento. Sobrinha dele, Osmarina Pena e outros familiares acompanharam a cerimônia simples e fizeram orações. Ela também não se conforma com a morte do tio. “Ele era muito forte, por isso é tão doloroso e inaceitável”, diz Osmarina. A irmã de Gilda mora em Manaus e só conseguiu chegar a São Gabriel uma semana após a morte, devido às restrições de viagens impostas para evitar a contaminação pelo novo coronavírus.

Na fotografia pendurada na casa, seu Casimiro está forte, sorrindo, numa paisagem com barcos e calçadão como os do Teatro Amazonas, em Manaus, ou das praias do Rio de Janeiro. Gilda olha e acha graça ao contar que o pai pediu na loja de fotografia que colocassem aquele fundo falso. Olha com carinho para a fotografia e repete que o pai era assim mesmo, como aparece na foto: bem forte. “Ele morreu trabalhando, fazendo roça. Só agora que ele morreu que ele tá descansando, parou de pegar terçado.”

Ana Amélia Handam • ISA