Despedida na véspera do Dia das Mães

No dia 2 de maio, um sábado, a agricultora Carine Viriato da Silva, indígena da etnia Baniwa, saiu de casa e foi para a roça da sua irmã Carmem Pereira da Silva, no Ramal 1, em São Gabriel da Cachoeira (AM). Sônia, irmã delas, também foi até lá. Elas tinham sido convidadas para comer a cutia que o marido de Carmem tinha caçado. “Minha irmã tá me chamando, falei assim com o meu marido. Vou lá então. A gente vai comer a cutia. O marido dela matou a cutia’”, conta Carine. 

Por volta das 8h, as três irmãs estavam na roça, colhendo mandioca. Trabalharam até por volta das 10h30, depois rasparam a mandioca e deixaram de molho, para depois ralar. Foram comer a cutia, conversar. Já à tarde, lá pelas 16h, foram embora. Carmem e Sônia seguiram para suas casas, na cidade de São Gabriel. Carine atravessou o Rio Negro em frente à orla principal da cidade e chegou ao Yamado, comunidade onde mora. Levou um pedaço de cutia que Carmem mandou para a mãe, Anita Leopoldino, de 80 anos, que também vive no Yamado.    

Esse foi o último encontro das três irmãs. No sábado seguinte, 9 de maio, véspera de Dia das Mães, Carine foi informada pelo telefone que sua irmã Carmem, que estava com 48 anos, não tinha resistido à Covid-19 e havia morrido. Nem velório teria, atendendo às regras sanitárias para evitar o contágio pelo novo coronavírus. 

“Quando eu estava indo embora do sítio, ela pegou um pedaço de cutia e pediu para levar para a mãe. E disse: ‘Minha mãe só não vai comer minhas comidas quando morrer’, ela falou assim. Eu fiquei sem palavra quando ela falou isso.” Carine vai contando a história, chorando, enxugando as lágrimas. Agora ela consegue desabafar, mas no dia que soube da morte, nem conseguiu chorar. “O pior é que a gente tentava chorar e não dava conta. A gente não tinha força”, relembra. 

O óbito foi um dos primeiros ocorridos em São Gabriel da Cachoeira. Na cidade, os dois primeiros casos da Covid-19 foram confirmados em 26 de abril. A família não sabe como Carmem contaminou-se com o novo coronavírus. 

Na segunda-feira, 4 de maio, a mãe de Carmem, dona Anita, e a tia Adelina Rodrigues, também foram até a roça no Ramal 1. “Minha irmã tinha deixado um pedaço de roça para a minha mãe”, conta Carine. Isso quer dizer que dona Anita poderia ir até lá, trabalhar na roça e levar o que colhesse. 

Nesse dia, Carmem já estava diferente. Ficou só deitada, silenciosa, com dor de cabeça.   “Se eu te convido para a minha roça, eu tenho que falar que pode arrancar sua mandioca aqui. Minha tia esperou que ela convidasse para arrancar, só que ela não falava nada”, explica na Carine. 

Na quarta-feira, Carine recebeu uma ligação da filha de Carmem avisando que a mãe não estava nada bem, com muita dor de cabeça. No dia seguinte, foi a vez da própria Carine começar a passar mal. Pensou que poderia ser malária – doença endêmica na região.  Ela avisou para a mãe que não estava nada bem e deitou-se na casa de forno, enquanto o fogo estava acesso para fazer o beiju, pois estava sentindo muito frio.

Nessa mesma quinta-feira, Carmem ligou para a mãe. “Minha mãe pegou o celular e ela falou assim. Mãe, estou indo no hospital não estou aguentando mais. Foi última palavra. Última palavra”, repete Carine. 

Carmem foi internada no Hospital de Guarnição do Exército (HGu), única unidade hospitalar de São Gabriel. Na sexta-feira, em outro telefonema, a filha de Carmem disse que a mãe estava piorando. Por outro lado, o marido da paciente pediu que a família se acalmasse, que Carmem iria melhorar, e informou que os médicos tinham decidido transferi-la para Manaus no sábado.

O cenário no Yamado não era animador: muitas pessoas da família adoeceram ao mesmo tempo. Carine encontrou forças para se levantar porque viu que sua mãe também tinha começado a passar mal. “Eu tinha que cuidar dela.” Além disso, sua tia também não estava bem. “Ninguém pensava que era a doença”, diz, referindo-se à Covid-19.

No sábado, Carine ficou esperando o telefonema do cunhado bem cedo, pois ele havia ficado de dar notícias. “Ninguém me ligou. Lá pelas 10h comecei a ficar desconfiada. Esperei até 12h de sábado, mas ninguém me ligou. Eu estava desesperada e liguei para a minha sobrinha. Ela começou a chorar e disse que a mãe dela tinha morrido.  Aí eu perdi o mundo”, disse. Carine precisou dar a notícia para a mãe e para a irmã Sônia. “Ela morreu no dia que ia viajar para Manaus, morreu na véspera do Dia das Mães”, disse.

Nascida na região do Içana, Carmem Pereira da Silva, da etnia Baniwa, morava na cidade de São Gabriel há muito tempo. Trabalhava como agricultora e tinha uma rotina de cuidar da roça, da casa e dos filhos. Era casada com Meq e tinha três filhos: Meq, Natália e Max, além de dois netos. Discreta, ela não gostava de participar de reuniões. 

Para ir à roça, saía de casa, no Bairro Areal, por volta das 6h, e lá pelas 9h já estava voltando, para evitar pegar o sol forte. Há mulheres que à tarde ainda retornam para trabalhar mais na roça. Mas Carine conta que sua irmã preferia ir só pela manhã: na outra parte do dia tinha afazeres como varrer o quintal, lavar a roupa. 

Até meados de setembro, a roça de Carmem continuava crescendo. Carine estava sem coragem de ir lá trabalhar. “Está tudo lá, a casa de forno. Não tenho coragem”, disse. Ela explica que, pela tradição, o correto seria jogar fora ou queimar os pertences da pessoa que morre. Carine não quer. Combinou com a mãe que dessa vez será diferente. Mas preferiu que a foto de Carmem não fosse divulgada. 

Adiou a visita ao marido e aos três filhos de Carmem, com medo de desmaiar no local, mas depois de quatro meses de luto conseguiu ir vê-los. “Eu e ela nunca deixamos de falar, conversar, vender nosso produto juntas. Eu parei de ir à casa dela, fiquei com medo de desmaiar, pensando nela vindo conversar, oferecer alguma coisa. Comer junto, tomar café junto”, diz. No dia que foi à casa da irmã, Carine viu que os objetos de Carmem não tinham sido jogados fora e ficou feliz. 

Guardou para si o aturá – cesto de carregar a mandioca – dela. “O que minha mãe me deu de lembrança para mim é o aturá dela. Eu peguei o aturá dela. Está guardado”, conta.

Ana Amélia Handam/ISA