Seu Olavo: o contador de histórias que conversou com o boto
Em uma noite, durante uma de suas muitas pescarias, seu Olavo ouviu uma voz perguntando:
– “Ei, Semu (primo, amigo), pegou muito peixe?”
– “Sim, peguei alguns”, seu Olavo respondeu.
Então a voz disse:
– “Pode me dar um pouco? Eu não peguei nenhum ainda.”
Seu Olavo colocou um peixe sobre o remo e esticou para fora do barco. Na escuridão, ele só ouviu como se alguém tivesse pulado na água e, depois, sentiu o banzeiro na canoa. Até ligou a lanterna, mas não viu ninguém por perto. A voz era do bot
Seu Olavo contador de histórias
Essa é a história da noite em que Seu Olavo conversou com o boto. Era um dos casos que ele gostava de contar aos familiares, aos amigos. Até os bisnetos e a criançada da rua se sentavam em frente à casa dele para ouvi-lo. O indígena Olavo Fonseca, de 78 anos, da etnia Arapasso, é uma das vítimas da Covid-19 no Alto Rio Negro e faleceu em 27 de junho, em Santa Isabel do Rio Negro (AM).
“São essas histórias que ele contava para nós quando éramos criança, quando brincávamos em frente de casa com as crianças da vizinhança e depois parávamos para ouvir… história do boto, história da cobra grande, da cobra Honorato. Boto, as cobras grandes, os pássaros, os encantados. Tudo isso são histórias que para muitos são mitos, mas a gente acredita. É história que a gente carrega”, relembra emocionada Virgínia Braga Fonseca, filha de seu Olavo.
Seu Olavo era agricultor, cuidava da roça ao lado da sua esposa, dona Mercedes de Braga, com quem teve 12 filhos, sendo que 9 deles estão vivos. A família numerosa tem ainda 23 netos e 16 bisnetos. Ele também foi funcionário público, serviços gerais na Prefeitura de Santa Isabel do Rio Negro. E, além de contar histórias, também gostava de ler e escrever. Lia de tudo, desde a Bíblia até os escritos sobre os mitos da região. Quando viajava a São Gabriel ou Manaus, sabia o nome de todas as comunidades e ia anotando os horários que passava por elas. Deixou pequenos escritos. Também foi um grande alfaiate, atividade que aprendeu com os Salesianos. Mas costurava só para si mesmo.
Provavelmente, seu Olavo contraiu o novo coronavírus devido ao movimento da própria casa ou então quando saía para retirar a aposentadoria, assim como aconteceu com muitas outras pessoas que precisaram sacar os benefícios. Inicialmente, a família pensou que era uma tosse comum e passou a tratá-lo com os chás tradicionais, mas o quadro foi piorando. Ele não queria ir para o hospital, pois ficava preocupado em deixar dona Mercedes. Não teve outro jeito: a família chamou a ambulância e ele precisou ficar internado no Hospital Irmã Edwiges Maria. Na unidade, ele sempre pedia para sair.
“A gente sempre pensa se deveria ter tirado ele antes ou deixado mais. A gente fica com essa inquietação”, relata. Um sobrinho que é técnico em enfermagem chegou a ajudar, mas não foi suficiente. Depois de quatro dias, seu Olavo já não queria que mexessem mais em seu corpo.
A família, então, resolveu levá-lo de volta para casa, mesmo tendo que assinar termo de responsabilidade. Com tristeza, Virgínia conta que seu Olavo precisou andar cerca de 5 metros para entrar na residência. O local fica um pouco afastado e o pessoal da ambulância que o transportou não conseguiu deixar seu Olavo dentro do imóvel. “Acho que o hospital deveria ter providenciado uma cadeira de rodas ou maca”, pondera. Alguns minutos após ter chegado em casa, seu Olavo disse que ia descansar. Logo em seguida, faleceu. A ambulância foi chamada e ele chegou a ser levado novamente à unidade de saúde, mas não teve mais jeito.
“O nosso corpo é um corpo sagrado. Não é qualquer um que vai mexer. Ele tinha plena consciência e disse que não queria ser mexido. A família decidiu atender a sua vontade”, diz Virgínia. Além disso, no hospital, ele precisava ficar isolado devido ao risco de contaminação. Essa situação também dificultou a permanência do idoso no local. “A minha irmã já tinha tido a Covid-19. Prontificou-se a ficar lá, mas não aceitaram. Isso pesou muito. Deveriam ter um olhar diferenciado para os nossos povos indígenas”, considera.
Seu Olavo estudou na região de Iauaretê, distrito de São Gabriel da Cachoeira, mas na juventude seguiu para Barcelos e, depois, para Santa Isabel do Rio Negro, onde formou sua família. Era um dos moradores mais antigos do Bairro Santa Inês e ajudou na mobilização para a construção da casa de farinha na vizinhança. Era lá que ele e dona Mercedes finalizavam o serviço iniciado na roça.
A história de vida, de seu povo, do quanto batalhou desde jovem andando pelos municípios do Rio Negro: todos esses ensinamentos, seu Olavo ia passando à família ao contar suas histórias.
“O meu pai sempre falou do seu povo, de Iauaretê, de onde eram seus pais. Falava de quando fazia a travessia do rio Uaupés com barco a remo, sem motor. Ele benzia também um pouco os netos, os filhos. Benzeu as minhas irmãs na gravidez, a primeira alimentação depois do parto, a criança, a primeira ida para a roça depois do parto. Também benzeu a nossa passagem de quando a menina se torna moça, para fechar nosso corpo. A gente de casa era ele quem benzia”, relembra.
A despedida foi bastante limitada, seguindo os protocolos sanitários. Mas os filhos que estavam em Santa Isabel conseguiram dar adeus ao pai. “Não teve velório. Ele foi enterrado à noite, no mesmo dia em que morreu. Dois sobrinhos conseguiram vê-lo ainda no hospital. Meus irmãos que estavam em Santa Isabel foram ao enterro. Eles já tinham tido a Covid e queriam estar com meu pai nesse momento. Só minha mãe não foi, pois a gente não sabia se ela tinha contraído ou não o vírus”, relata.
Virgínia estuda administração em Belém e não conseguiu se despedir do pai. Acompanhou todo o processo da doença a distância, dividindo as decisões com os irmãos. Seus professores chegaram a fazer uma ‘vaquinha’ para ajudá-la na viagem, mas não deu tempo. “Mesmo assim eu decidir vir e ficar com minha mãe”, diz ela, em Santa Isabel do Rio Negro, de onde, com voz emocionada, contou um pouco as histórias de seu Olavo.
Ana Amélia Handam • ISA